sábado, novembro 24, 2012

ANDAR COM AS PRÓPRIAS PERNAS


Somos grandes tolos!! 
"Ele passou uma vida de ócio", dizemos. "Não fiz nada hoje". 
O quê, então não viveram?
Essa ocupação é não apenas fundamental como também a mais ilustre que temos.
"Se tivesse sido colocado numa posição de poder, teria mostrado o que era capaz de fazer". Conseguiu organizar e gerir a própria vida? Realizou a maior tarefa de todas. 

Para mostrar e explorar os seus recursos, a Natureza não precisa de fortuna. Exibe-se de igual forma a todos os níveis e velada, bem como descoberta. 
O nosso dever é compor o nosso caráter, não livros, e conquistar, não guerras e províncias, mas ordem e tranquilidade em nossa conduta. 

A nossa maior e mais gloriosa obra-prima é viver de forma adequada. Todo o resto: governar, amealhar, construir, são, quando muito, os nossos pequenos apêndices e adereços.

Saber apreciar o sermos válidos é uma perfeição absoluta e quase divina. Procuramos outras posições porque não entendemos o uso das nossas, e saímos de nós porque não sabemos como é o nosso interior. Contudo, de nada vale subirmos sobre muletas, pois continuamos a ter de andar com as próprias pernas. E mesmo no mais elevado de todos os tronos, continuamos sentados no nosso traseiro.

Michel de Montaigne "Sobre a experiência"

quinta-feira, novembro 15, 2012

BOURDIEU E ALGUNS CONCEITOS DO "CAMPO" RELIGIOSO



Pierre Bourdieu (1930 – 2002) é um dos Sociólogos (apesar da formação Filosófica) mais lidos e estudados do mundo. Atribui-se a ele a definição de “campo”, seja religioso, político ou artístico, enquanto espaço social estruturado por meio de diferentes posições, com propriedades particulares e cuja dinâmica depende dessas posições para se manter, independentemente de quem as ocupe.

Segundo Bourdieu, a gênese do campo religioso remete ao processo de aparição e desenvolvimento das cidades na Idade Média, acompanhado pelo gradual desaparecimento da relação racionalista do homem com a vida, relação essa que passaria a orientar a busca do “sentido” da existência.

Esse processo fomentou a constituição tanto de um corpus estruturado de conhecimentos secretos, raros, como de instâncias especificamente organizadas para difundir “bens religiosos”, ou o capital simbólico de cada grupo, observando-se ainda uma paulatina moralização das práticas e das representação religiosas a partir de então.

O conceito de campo desenvolvido por Bourdieu, enfatiza a existência de tensões, de lutas por poder dentro de cada campo. Isso se manifesta, por exemplo, quando novas pessoas, novas idéias, buscam legitimar sua posição em relação a um grupo ou a uma normativa dominante, que, por sua vez, tenta defender a sua posição excluindo a concorrência e não legitimando o novo.

Bourdieu afirma ainda que o dominante num campo religioso é o conjunto de pessoas que detém o capital simbólico específico desse campo, composto por regras, crenças, técnicas, conhecimentos, história, hierarquia. Ao fazer uso desse capital simbólico, o dominante busca manter-se no poder, fundamentando sua autoridade com base nesse capital simbólico e tendendo à defesa da ortodoxia e à busca pela exclusão dos recém-chegados que, então, adotam estratégias de subversão como as da heresia, para construir a sua legitimidade própria.

Bourdieu também aponta para a existência de uma divisão social do trabalho na dinâmica dos campos religiosos e ressalta especificamente duas posições sociais assumidas por seus integrantes: a dos sacerdotes, entendidos como aqueles detentores de uma autoridade legitimada pelo grupo dominante, e a dos profetas que, em oposição ao grupo dominante, representam a força carismática e herética de novas posições ideológicas dentro do campo religioso.

Segundo Bourdieu, os sacerdotes dispõem de autoridade de função, que dispensa conquista, continuamente confirmada em virtude do fato de sua autoridade ser legitimada pela função, pela posição ocupada no campo religioso. Já a autoridade do profeta deve ser sempre conquistada, no conjunto de determinado estado de relação de forças. Nas palavras do autor:

            “O profeta opõe-se ao corpo sacerdotal da mesma         forma que o descontínuo ao contínuo, o extraordinário ao ordinário, o extracotidiano ao cotidiano, ao banal, particularmente no que concerne ao modo de exercício da ação religiosa, isto é, à estrutura temporal da ação de imposição e de inculcação e os meios a que ela recorre” (Bourdieu 1992:89)

BOURDIEU, Pierre (1992), Economia das trocas simbólicas. Rio de Janeiro: Perspectiva.

sexta-feira, novembro 02, 2012

CONHECIMENTO E FELICIDADE


Os animais não parecem infelizes, pelo menos não da mesma forma que os seres humanos. Tal como Walt Whitman escreveu, em "Song of Myself": 

                Creio que poderia voltar e viver entre os animais.... eles são tão plácidos e contidos,
                Nem um é infeliz em toda a vasta terra.

Muitos seres humanos são infelizes devido àquilo que sabem, ou por causa do que não sabem. A ignorância é uma bem-aventurança desde que continue a ser ignorância. Assim que alguém descobre que é ignorante, essa pessoa começa a querer não ser assim. No caso dos gatos, isso é chamado curiosidade. No caso da humanidade, é algo mais profundo e ainda mais essencial.

Quando percebemos que não sabemos , o desejo de conhecimento é universal e provavelmente irresistível. Foi a tentação original da humanidade, e não há homem ou mulher, e especialmente criança, que o possa suprimir durante muito tempo. Mas, tal como disse Shakespeare, é um desejo que cresce com aquilo de que se alimenta. É impossível saciar a sede de conhecimento e, quanto mais inteligentes formos, mais isso se torna verdadeiro.

Ao conhecimento do particular falta a qualidade da insaciabilidade essencial. O mesmo pode ser dito da fé que ultrapassa o entendimento. Assim, e desde tempos imemoriais, a única cura eficaz para a doença que e o desejo insaciável de conhecimento é a fé, a graça de Deus.

Nossos mais remotos ancestrais poderão ter tido um equivalente primitivo da fé. Milhões de ancestrais mais recentes tiveram-na, ou disseram que a tinham. Mas será que existem muitos seres humanos dos nossos dias que se sintam confortáveis com o conhecimento que possuem, sem desejar mais? Ou será que a doença do conhecimento insaciável se transformou numa epidemia entre todos os povos da Terra?

Excerto do livro "Uma breve história do Conhecimento" de autoria de Charles Van Doren. Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2012.