sábado, março 30, 2013

FANATISMO SECULAR




Por: Marcos Nicolini*


Marramao (Céu e Terra) nos dirá que “Secularização” foi o nome que demos à passagem dos bens que pertenciam à Igreja para a propriedade e uso não religiosos. Tornou de uso secular aquilo que era de uso sagrado. Mas, um conceito que inicialmente se aplicava à passagem do patrimônio, terras, edifícios, valores fiduciários, passamos a aplicar à passagem de conceitos religiosos dos quais se retiravam o caráter sagrado. 


A história do movimento dos sentidos que damos às palavras é pródiga em exemplos deste tipo, não apenas do sagrado para o secular, como de um sentido para outro sentido. Um exemplo de secularização que podemos apresentar está no conceito de tempo messiânico. Para os cristãos o tempo cronológico, e, portanto, não sagrado, é marcado por acontecimentos, sagrados, que apontam para o retorno do Messias. A vinda do Messias, a parousia cristã, é o último acontecimento, isto é, eschatos em grego. 

Karl Lowith em seu livro “O sentido da história” nos dirá que esta escatologia (o discurso sobre os últimos acontecimentos, ou últimas coisas) será secularizada nos escritos de Karl Marx. Antes, Karl Marx toma o tempo messiânico secularizado como estrutura geral para sua metahistória. De acordo com Lowith, em Marx a história também encerra acontecimentos escatológicos, cujo culminar será a tomada do poder pela classe trabalhadora (Messias) no fim da história (o eschaton), e que esta história pode ser entendida como luta de classes (uma escatologia secularizada). 

Também Isaiah Berlin nos dirá em seu “Quatro ensaios sobre a liberdade” que esta, a tal da liberdade, será concebida em Rousseau a partir dos escritos de João Calvino. Seguindo um pouco mais, e passando pelos jacobinos, a própria liberdade em Marx será tributária a este sentido de liberdade calvinista. Ora, Calvino, um bom cristão, entendia também o tempo cronológico como que marcado pela eternidade, isto é, acontecimentos cujo sentido é a parousia. 

Neste sentido a liberdade humana não estaria na ausência de impeditivos para a realização da vontade individual, mas, em percebendo as marcas da eternidade gravadas no tempo cronológico, o indivíduo livre seria aquele que se move de acordo com o tempo messiânico. A liberdade deixa de ser positiva, isto é, desimpedimento, para uma liberdade de conformação. Marx, de Lowith e Berlin, adota este conceito de liberdade que se ajusta à história da luta de classes. 

Ser livre, para Marx, é conhecer os acontecimentos na história da luta de classes que apontam para um culminar da supressão das classes e pôr-se pro-ativamente e em conformidade a este movimento histórico. Liberdade não é fazer o que queremos, mas fazer tudo o que a história da redenção determina que façamos. Assim, tanto o tempo quanto a liberdade são conceitos religiosos secularizados que são retomados por Marx. Mas, ainda aqui, falta-nos um conceito secularizado que deve ser atualizado, talvez não por Marx, mas por aqueles que tomam-no como referência primária. 

Para que possamos pensar neste conceito, tomemos o que nos diz Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia: “Fanatismo: esta palavra (de fanum = templo) foi empregada a partir do sec. XVIII com o mesmo valor de entusiasmo para indicar o estado de exaltação de quem se crê possuído por Deus e, portanto, imune ao erro e ao mal. No uso moderno e contemporâneo, “F.” Acabou prevalecendo sobre “entusiasmo” para indicar a certeza de quem fala em nome de um princípio absoluto e, portanto, pretende que suas palavras também sejam absolutas.” 

Para as três grandes religiões do Livro, ou, os três grandes monoteísmo, o fanatismo traz relação direta com as crenças em um único texto fundante e um grande personagem central. Para o judaísmo temos a Torá e Moisés, no cristianismo a Bíblia e Jesus, e no islamismo o Corão e Mohamed. Para os fanáticos o livro que fixa as palavras deste grande personagem, ou profeta, é inquestionável segundo uma dada interpretação: ortodoxia. 

Também estas três religiões do Livro tem seus lugares sagrados, seus templos. Foram chamados de fanáticos aqueles homens e mulheres que se afastavam do mundo e permaneciam longamente no templo, em tempos de crise e calamidade, na crença de que o templo os protegeria. Em largo sentido é este o mito que está por traz dos fanatismos: a crença num texto fundante e infalível, num profeta que teve a visão escatológica cujas palavras foram fixadas naquele texto, e um lugar de refúgio em tempos de crise (o fanum), aquele que aponta para o último momento. Assim como houve a secularização do tempo messiânico e da liberdade, também há a secularização do fanatismo, sem a qual não se pode operar as crenças de maneira eficaz. 

O fanatismo no materialismo histórico aponta para um profeta que teve a revelação dos acontecimentos futuros e os fixou em textos que devem ser lidos segundo uma dada ortodoxia, que congela a interpretação e protege tal ciência dos ataques heréticos ou profanadores. O fanatismo é este templo sagrado que permite em momentos de crise, momentos em que a história é marcada por acontecimentos que apontam para o culminar da própria história, que se encontre um refúgio. Refugia-se no templo, no fanum, no fanatismo a fim de marcar uma fronteira entre o mundo em ruínas e as verdades absolutas que garantem, produzem segurança contra a inexorável escatologia que dá passos largos para o fim deste mundo e a inauguração de um reino onde não haverá mais dor e pranto. 

O fanatismo se assegura de um núcleo firme e central baseado no profeta e no texto, e cria um anel protetor deste núcleo que o torne imune aos ataques dos bárbaros. Este conjunto, núcleo e anel, garantem de maneira mítica que o núcleo seja inviolado e inviolável. 

O fanatismo religioso tem, em sua vertente secularizada, isto é, no fanatismo político, um herdeiro. Se eles se confrontam é porque pretendem ocupar o mesmo espaço, ou, a mesma estrutura funcional, e não porque sejam antagônicos.

*Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: nicolini@marcosnicolini.com.br

domingo, março 24, 2013

POR UM ESTADO LAICO


"A condição da livre expressão das crenças e das práticas religiosas é que elas não transgridam, em nenhum momento, a ordem pública"

Um Estado no qual as autoridades religiosas não fazem parte da regulação da vida pública: essa é a definição mais simples que podemos dar a um Estado laico. Isso significa que a elaboração do Direito é responsabilidade apenas do poder público. Consequêntemente, uma instituição religiosa não pode, de nenhuma forma, prescrever aos fiéis práticas e comportamentos que os conduziriam à contravenção das leis. 

Essa proposta é suficiente para definir as condições em que as manifestações religiosas são aceitáveis em um Estado laico: é preciso que não contradigam os princípios fundamentais que a Constituição define, as leis e regras que regem a sociedade a que dizem respeito e da qual o Estado é a garantia. Em todos os outros casos, o Estado deve intervir para impedi-las. 

Mas tal proposta não implica que as religiões sejam condenadas à invisibilidade no espaço público. Nas sociedades democráticas, o livre exercício da liberdade religiosa é um princípio fundamental, e o Estado deve, necessariamente, assegurar sua proteção. 

Ocorre que a liberdade religiosa não se refere só à liberdade de consciência privada. Refere-se, igualmente, ao direito a cada um, e de toda a comunidade, de exprimir publicamente suas crenças e de praticar seu culto. 

Um Estado democrático deve, aliás, zelar, em uma sociedade pluralista, para que todas as comunidades tenham, nessa questão, direitos iguais. Porém, a condição da livre expressão das crenças e das práticas religiosas é que elas não transgridam, em nenhum momento, a ordem pública. 

Os princípios são simples. Colocá-los em prática é, evidentemente, muito mais complicado. De um lado, porque a definição da transgressão à ordem pública é sempre delicada e sujeita à interpretação: ela é vista, por exemplo, no caso das controvérsias em relação aos signos e às vestimentas no espaço público. 

De outro lado, porque as religiões que reivindicam para si uma verdade absoluta são regularmente propensas a contestar a legitimidade das autoridades civis, que utilizam, como argumento, a manutenção da ordem pública para limitar tais manifestações de sua expressão. 

Se certos conflitos - como o trajeto de uma procissão ou o nível de barulho tolerável em um lugar de culto - podem parecer anedóticos (o que não significa que não possam ser violentos), há os que tocam questões graves, como o dever de portar armas - muitas vezes recusado por certos grupos religiosos - ou a obrigação de aplicar vacinas em crianças. 

Esses conflitos são exacerbados quando tratam de religiões cuja presença no espaço público não é aclimatada adequadamente ou que não fazem parte intrínseca da cultura comum de uma sociedade. 

O debate sobre a aceitabilidade de manifestações religiosas aos olhos da ordem pública é, então, misturado a outras questões que tocam o sentimento - nem sempre claramente expresso - que essas novas expressões religiosas poderiam contestar dessa cultura comum. Seria uma ameaça à identidade coletiva nacional. 

A junção pode então se dar livremente entre sentimento e impulsos xenófobos e racistas, que a expansão de fluxos migratórios, no contexto de crise econômica, tende a alimentar. 

Vemos claramente essa questão nos debates que tratam o lugar do islã na França e em todas as sociedades europeias. E na responsabilidade direta do Estado laico de coagir essas tendências, preenchendo plenamente seu papel de garantidor do pluralismo religioso.

No entanto, sobre ele recai também a responsabilidade de não ferir os princípios fundamentais que garantem as práticas que qualquer grupo religioso possa prescrever aos seus fiéis, crenças e comportamentos que limitem seu acesso ao exercício pleno de suas liberdades de cidadãos e de direitos que são os seus enquanto seres humanos. Seria necessário, para isso, editar leis específicas para enquadrar a atividade de grupos religiosos? 

Sabemos que o problema foi evidenciado na França - especificamente em relação a grupos radicais considerados sectários, no caso do uso de códigos religiosos na escola. 

É grande o risco de que tais intervenções objetivas possam sempre ser interpretadas como uma tomada de partido direta do Estado na discriminação cultural de certas populações ou na definição de formas social e politicamente legítimas - religiosamente corretas, da religião, formas que ele não tem que conhecer. 

Essa tomada de risco é um tanto quanto inútil na maior parte do tempo, pois o direito comum fornece todo o arsenal jurídico necessário para lutar contra as práticas religiosas não aceitáveis. 

A utilização de todos os recursos do direito comum contra os abusos e impedimentos de religiões é a forma mais razoável que o Estado laico tem para preservar e reforçar o papel arbitral que é seu, manifestando cuidado estrito de respeitar a si mesmo e de fazer respeitar a liberdade religiosa.


DANIÈLE HERVIEU-LÉGER , socióloga, é administradora da Escola de Economia de Paris. Foi diretora de Pesquisa no Centro Nacional da Pesquisa Científica, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, e diretora do Centro de Estudos Interdisciplinares dos Fatos Religiosos.

sábado, março 16, 2013

“HABEMUS PAPAM”



Jorge Mario Bergoglio um desconhecido, não aparecia nas listas nem como primeiro favorito, nem como segundo ou mesmo como último. No entanto, não foram necessárias muitas rodadas de votação para apresentar ao mundo católico seu novo comandante. Um cardeal que não pertence à cúria, ou seja, aquele ninho infestado de lutas, conspirações e complôs dignos de uma trama de espionagem. 

Tímido, receoso, equivocando-se nos passos estabelecidos pelo cerimonial parecia ter pedido permissão para estar ali e, ao mesmo tempo, (certamente) radiante neste momento de vitória íntima. Jorge Bergoglio é o primeiro papa argentino e o primeiro latino-americano da história. De agora em diante se chama Francisco. Seu gesto inaugural consistiu em rezar por Joseph Ratzinger e logo inverteu a ordem dos costumes. Em vez de dar a benção, pediu aos fieis que o abençoassem. Então caiu profundo silêncio sobre a praça de São Pedro e o papa recém-eleito recebeu a benção do povo presente antes que ele os abençoasse. 

Chamá-lo de “Francisco primeiro” é um erro. Jorge Bergoglio é, e assim esclareceu o porta-voz do Vaticano, Monsenhor Lombardi, somente Francisco. Será primeiro apenas quando outro papa escolher o mesmo nome. Os fieis gritaram seu nome, cantaram e dançaram na praça São Pedro em uma espécie de êxtase renovado. Não importava que não o conhecessem bem, ou que seu nome fosse quase impronunciável. A lealdade da fé se impôs aos procedimentos secretos e à surpresa. “É um papa afinal, isso é a única coisa que importa”. 

Mario Jorge Bergoglio se instalou no trono de Francisco no comando de uma igreja assolada por seus próprios pecados. Mais ainda, a indicação de Bergoglio também rompeu a magia da adversidade. O prenúncio era para um conclave dividido, antagônico em suas bases, inconciliável em suas posições. A rápida indicação do papa Francisco, contudo, foi recebida como um alívio por todos. 

A viagem de Francisco promete ser densa. O Vaticano não está à busca apenas um papa com tarefas e postura apenas espiritual, está à busca e espera um super homem, um atleta, um bombeiro, um conciliador, um corredor de cem metros e um general disciplinado e forte. Um ser humano com poder e capacidade para reorientar a cúria, reorganizar os ministérios do Vaticano, purgar as águas contaminadas com as sujeiras profundas reveladas pelos “Vatileaks” e, além disso, voltar a semear os valores cristãos no coração das sociedades ocidentais que se banham no hedonismo e no consumo. Um papa administrador, evangelizador, pastor, teólogo de alcance mundial e grande comunicador de suas mensagens. Uma aposta que tem a envergadura do impossível. 

As primeiras obrigações do novo papa são vergonhosamente terrenas. A primeira delas será a de penetrar o conteúdo do informe secreto elaborado por uma comissão composta pelos cardeais Jozef Tomko, Salvatore de Giorgi e Julián Herranz. Esse documento dedicado ao caso dos “Vatileaks”, ou seja, o roubo dos documentos de Bento XVI e contém informações a respeito das guerras de poder, dos abusos sexuais e práticas financeiras no seio do banco Vaticano o IOR, repletas de irregularidades. Segundo consta esse informe teria sido determinante na renúncia de Joseph Ratzinger. 

Quando Francisco o ler talvez entenda melhor as razões que levaram seu antecessor à renúncia, ou se dê conta de que ser um humilde pastor não bastará para reformar a igreja e seus males ante os temas da sociedade, o interminável catálogo de acusações de abusos sexuais contra menores e a também interminável lista de hierarcas que protegeram esses criminosos. 

Talvez Francisco faça muito melhor e caminhe em outra direção daquela que tomou João Paulo II, Bento XVI e do próprio Cardeal Bergoglio antes de receber o título de Papa Francisco.

quinta-feira, março 07, 2013

O "EMARANHADO" DE ROMA




Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a figura do Papa. Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte, legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.

Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira. O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II, que, para muitos especialistas explica a crise atual.

Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano. Próximo à Opus Dei, representante do Banco Santander na Itália desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano. As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo norte americano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente do IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.

João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade, algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais. Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários cadáveres. No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.


Um belo "emaranhado" nem um pouco digno de ser chamado de "representantes do Cristo de Nazaré"!!

Fonte: Carta Maior por Eduardo Febbro