sábado, junho 29, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDÉIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE IV


Já Agostinho nos fez saber que os antigos articulavam de maneira coesa e co-dependente três teologias: a teologia mítica, a teologia política e a teologia natural. Diferentemente como pensamos as questões da ciência, da política e das narrativas em nossa contemporaneidade, os antigos articulavam tais “teologias” de maneira integrada, sem cisões ou fendas. Não fragmentavam em departamentos distintos e pouco permeáveis, tais saberes. As teologias míticas tratavam dos relatos sobre os nascimentos dos deuses, dos homens buscando legitimar as coesões político-sociais; as teologias políticas das relações entre os deuses e os homens, e entre os homens e homens na cidade; as teologias naturais entre os deuses e o mundo natural, certa cosmologia. Assim como não haviam regiões de saberes autônomas, ou, apartadas uma das outras, também os deuses, os homens e a natureza não formavam três regiões incomunicáveis, distintas. A natureza, para os gregos, era tudo o que existe, em outras palavras, os deuses faziam parte da natureza.



Conforme pudemos ver anteriormente o universo, segundo a proposição aristotélica e posteriormente neoplatônica, era constituído por esferas concêntricas e a mais exterior era a do Motor Imóvel, ou, o Deus de Aristóteles. O Deus de Aristóteles não era transcendente ao Universo, isto é, externo e diferente deste, mas estava na Natureza, na ‘physis’. A consequência será percebida mais tarde, quando a visão de mundo medieval agostiniana-neoplatônica for abalada pelo aristotelismo que penetrará na Europa pela via da Península Ibérica com os mouros. Por hora precisamos apenas marcar este elemento grego-romano nas três (uma) teologias. 


Salientamos que embora sejam mítica, política e natural, são, sobretudo (ou, sob-tudo) teologia. São discursos com pretensão de verdade não apenas sobre os deuses, e, mais tarde, sobre deus, mas permeados pela divindade. O Universo estava repleto de deuses. Uma outra consequência desta co-dependência dos relatos míticos, da política e da natureza com a teologia, é que surgirá na Grécia Antiga um conjunto de pensadores que procurarão razões (logos) sem tomarem referência na teologia. Suas proposições serão banidas da Cidade não pelos fundamentalistas cristãos, que somente surgiriam dois mil e quatrocentos anos mais tarde, mas o foram por Platão, Aristóteles (e seus discípulos) e pelos neoplatônicos. O que nos cabe neste momento é sinalizar para o fato que o ateísmo, se é que podemos chama-lo assim sem o risco do anacronismo, surge como possibilidade na Grécia Antiga como busca de um discurso, ou, explicações e narrativas sobre a natureza e a política sem o uso, ou sem referência às divindades. Portanto, buscar a verdade sobre a Política e a Physis sem que se faça Teologia. Mas a Teologia sobreviverá em Platão, em Aristóteles e seus discípulos, sem o apelo à transcendência, isto é, sem que se pergunte pela existência de algo que seja fora da Natureza e uma divindade suprema que exista além dela.

Outro elemento importante que precisamos ressaltar é aquele que nos permite pensar o conhecimento, e este dado pela razão, antes, pelo logos, pelo discurso com pretensão de verdade. Em Aristóteles, por exemplo, o conhecimento era pensado como algo que nos era dado do mundo para o homem. O intelecto humano era entendido como passivo e as coisas do mundo marcariam este intelecto passivo, conferindo-lhe a forma, ou, usando uma palavra mais contemporânea, ainda que imprecisa, informando. Dizer que um certa coisa é um “cavalo”, ou, dar o nome de “cavalo” aquilo que está diante de mim, é dizer o que é aquilo, em outras palavras, o que confere forma à matéria. Para Aristóteles encontramo-nos com a essência de uma coisa nela mesma. Para este filósofo grega, a forma e a matéria são simultâneas e o saber está na experiência passiva daquele que está diante do “ente”, daquilo que se apresenta aos sentidos.

Em Platão, o nome de uma coisa, quando determinado com exatidão, diz o que é a ideia da coisa. Ao olharmos para um “cavalo” devemos buscar nele a ideia que resiste mesmo quando este cavalo não mais estiver diante de nós. A ideia é eterna e antecede ao ente que está diante de nós. Saber está é saber o nome da coisa, e este nome representa a coisa. Representar é tornar presente pelo nome aquilo que está ausente. Não nos interessam aqui os detalhes da teoria do conhecimento dos antigos, a não ser que este conhecimento vem desde fora até o intelecto humano, o qual será marcado, informado com o ser. O intelecto humano deve espelhar o mundo, ou, como se o intelecto fosse um museu, ter um conjunto de formas (esculturas, quadros, etc.) que represente o mundo. Quanto mais o homem contempla o mundo, mais seu intelecto será um “espelho” deste mundo. Para tanto o homem deve ter um atitude contemplativa diante do mundo. 

Contemplar o mundo é fazer teoria. Duas palavras que têm uma conotação grave desta relação exterior com o conhecimento. Contemplar traz a ideia de um adorador diante do templo e que se deixa ser um com a divindade que ali reside e que tem diante dos olhos. Teoria também traz este conceito divinatório, pois teoria é ter a visão dos deuses, isto é, ver o que os deuses veem na mesma medida que os deuses são vistos.A visão Absoluta está entremetida nesta teoria contemplativa. Conhecer é participar do Absoluto. Mas este Absoluto não é apenas o da teologia natural, mas a íntegra da teologia em suas três modalidades: natural, política e mítica.

Os deuses que movem o cosmos ordenam a cidade, e estes movimentos de ordenação são narrados miticamente. Platão, por exemplo, questiona Homero não por este narrar os deuses e os homens, mas porque estas narrativas não cooperam com um tipo de Cidade que Platão julga ser justa. De uma justiça que Platão julga devemos buscar. A Cidade idealizada por Platão não nega os deuses, mas visa racionaliza-los, submetê-los à razão, ao logos, ao discurso com pretensão de verdade. Para Platão a ideia de justiça não está na Cidade, mas deve ser contemplada por um filósofo-rei. Assim, também a teologia, em Platão, deve estar submetida ao Mundo das Ideias: do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro. Mais tarde os neoplatônicos proporão a ideia do Uno,aquele que se auto contemplando realiza esta Teoria do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro. Mais adiante ainda, os cristãos tomarão o Uno neoplatônico e o chamarão de Deus Pai.

Contudo, em Aristóteles a justiça não é uma Ideia que está acima da Cidade, a qual deve ser teorizada, mas algo que há de ser constituída na própria Cidade. Digamos que o trabalho de Platão favorece mais às elaborações transcendentais e a de Aristóteles as imanentistas. Em outras palavras, Platão permitirá, com menos trabalho, que se pense posteriormente num Deus Uno e que é além da Natureza, para fora dela, transcendente; mas, Aristóteles exigirá um trabalho mais penoso e menos suportável, e que reclamará sempre por uma divindade na Natureza. Enquanto Agostinho se afastará de Aristóteles e se referenciará nos Neoplatônicos, Tomás de Aquino buscará uma leitura cristã de Aristóteles, cujas limitações e fragilidades não demorarão tanto tempo para emergirem.

Aristóteles procurará olhar as Cidades, suas constituições, e pelo trabalho intelectual de visualização destas, propor uma Política. Platão criticará todas as formas de Cidades (oligárquica, monárquica, democrática e tirânica) e procurando, por meio da razão, contemplar a Ideia do Justo, do Belo, do Bom e do Verdadeiro, teorizar uma Cidade. A Cidade de Aristóteles será sempre resultante de sua própria constituição, enquanto a de Platão, segundo ele mesmo, não será jamais realizável, não porque sua ideia é imperfeita, mas porque a ação humana sempre será imperfeita. Não por acaso Aristóteles será esquecido no Ocidente até o século XIII, enquanto o pensamento de Platão ecoará pela via neoplatônica-agostiniana. Não por acaso Platão ecoará em toda utopia, desde Thomas Morus em diante, até mesmo em Marx. Mas, a despeito destes trabalhos filosóficos, coexistia na Antiguidade o forte imbricamento entre religião-política-natureza-mito.

A despeito de todo este esforço teórico, o trabalho filosófico esbarrava numa cultura, numa paideia. A Cidade Antiga Grega e Romana, por sua vez, movia-se (podemos dizer sem que cometamos erros grosseiros que este mover traz o sentido aristotélico do termo) em torno das estruturas religiosas. O termo romano “pietà” sintetiza esta estrutura. A piedade romana era a guarda das tradições da cidade, da memória dos antepassados e dos deuses. Como tradições entendia-se a língua, a propriedade, a religião, as leis. A religião diz respeito aos templos, aos ritos, aos mitos, ao fogo sagrado e ao lar. A propriedade, aquilo que é próprio de uma “gens” (família, povo), diz respeito ao que foi legado pelos antepassados, que ali habitam e no qual estava o lar, o lugar onde o fogo eterno nunca deveria deixar apagar e diante do qual se apresentavam os sacrifícios. Via de regra a língua comunicava uma “gens” aos deuses, ou, como podemos ver entre os hebreus, a língua deles era a língua de YHWH e que aquele povo preservava como língua sagrada. Os Gregos não chegavam a tanto, mas consideravam bárbaros, pessoas destituídas de razão, todos os povos (“gens”) que não falavam a língua dos helenos. As leis, para os hebreus, foram dadas por YHWH a Moisés no alto do Monte, mas para os helenos a lei se obtinha na teologia mítica. Os escritos homéricos, por exemplo, não apenas falam dos feitos heroicos dos homens e dos deuses, mas relatam os valores que estavam em jogo, as estruturas políticas em fundação.

Contudo, ainda que deuses e homens participassem da Natureza, a natureza dos deuses diferia da natureza dos homens, assim como a natureza humana diferia da natureza dos demais seres animados (animais e plantas) e dos seres inanimados (terra, água, ar e fogo e tudo que por eles era constituído mas não tinham alma, ou seja, não tinham em si o princípio de movimento). Uma vez que os deuses e os homens tivessem naturezas distintas, podemos perceber que são seres separados. Assim encontramo-nos diante da ideia de sagrado e profano: o sagrado seria o que estivesse reservado para uso dos deuses e o profano seria o que estivesse reservado para o uso cotidiano dos humanos. Há um corte! A religião se colocaria, então, neste corte, o qual menos significava religare, ou, aquilo que buscaria estabelecer pontes, criar ligações, e mais significava cortar, fender, dividir, religio. Em certo sentido, mais do que se colocar no corte, a religião pode ser pensada como o corte: sagrado/profano.

No centro de uma religião pensada como corte está o sacrifício, e deste a tragédia. Pelo menos nos gregos e nos romanos a tragédia organizava a Cidade. Acreditavam aqueles povos que se podia prevalecer sobre o caos e a desordem por meio do sacrifício de um bode expiatório. A morte de um inocente (bode expiatório) que fizesse convergir (catarse) o ódio (timos) de toda a população seria suficiente para apaziguar a cidade, restaurar a ordem e afastar o caos. Conforme nos dirá Derrida (filósofo francês) o canto trágico (do teatro grego) tanto representa o grito fúnebre do bode expiatório no sacrifício, quanto o júbilo festivo da população que se alegra. O cosmos mantém sua ordem, então, a partir da tragédia, o sacrifício necessário de um bode expiatório, a ordem política é restaurada, tudo conforme os mitos. Homero é pródigo em conjugar estas teologias e integra-las. Não é por acaso que a Guerra de Tróia há de começar com o sacrifício de Efigênia em Tauris e assim garantir a vitória dos helenos sobre a Ilia (Tróia).

Mas, devemos salientar: Platão enfrenta a tragédia e procura tirar os poetas da Cidade. Não qualquer poeta, mas os poetas trágicos, nomeadamente, Homero. O livro da República (de Platão) inicia-se com Sócrates não participando de um evento cívico, ou seja, religioso. Também devemos salientar que a República apenas foi referenciada pelos escritores medievais, ou, numa releitura cristã aplicada à Roma do século XIII. Por outro lado a democracia ateniense convivia sem problemas com a religiosidade grega. O que desejamos dizer é que Platão coloca no seio da Cidade grega uma tensão oriunda do confronto à tragédia, mas sem abolir os deuses, antes, submetendo a teologia à razão, por meio da contemplação, pelo filósofo-rei, do Mundo das Ideias. Em certo sentido a teologia mítica é abandonada em prol da Razão, do discurso com pretensão de verdade o qual subordina o discurso sobre os deuses, o discursos político e o discurso natural, a partir de uma atitude contemplativa. O saber continua do mundo para o intelecto humano, articulado pela Ideia do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro.

*PARTE IV do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

sábado, junho 15, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA (PARTE III)



Parece-nos que quanto para mais distante olhamos, mais fabuloso e permeável à crença nos torna a descrição. Contudo, quanto mais nos aproximamos de nossa contemporaneidade, menos visível se apresenta a nós os fatos e a descrição se torna plural e conflituosa, arredia ao assentimento. Tanto mais quando buscamos dialogar em torno desta Babel que é a religião cristã ocidental.


Estamos girando em torno de um acontecimento e desenvolvimentos subsequentes e provenientes deste, a fim de nos achegarmos às tensões de nosso tempo. Estamos caminhando ainda em passos curtos, mas não em demasia. Estamos falando de Martinho Lutero que ousou expor diante do mundo as suas noventa e cinco teses, cujo sentido foi apontar para Roma, a Igreja sediada nesta cidade, e fitando o Pontífice, dizer, ou, não dizendo declarar: você não está falando a verdade. A história do cisma religioso do Ocidente é a história do fim da verdade. Não apenas de seu ocaso, mas de sua desfundação, a história da deslegitimação do poder. O cisma da Igreja do Ocidente, em Igreja Católica Romana e Igreja Protestante, é o momento em que a unicidade da verdade é rompida e nos encontramos diante de duas verdades, e a partir dali, muitas verdades, nenhuma verdade. 

De um lado a Igreja que se forma a partir do segundo século de nossa era, tendo como chave o bispo romanode nome Clemente e que escreve uma epístola à igreja de Corinto, promovendo um movimento desde a ekklésia grega até a Igreja romana. De outro lado o teólogo agostiniano de nome Martinho, no século XVI, que diz que a Igreja e seu clero não tem o direito de vender indulgências, pois não é ela a guardiã da salvação, sabendo que o “justo viverá da fé”. Ou, em outras palavras, a salvação não é uma propriedade da Igreja, mas, sendo graça de Deus em Cristo, deverá ser apropriada por fé pelo indivíduo que foi justificado pelo próprio Deus. Este pequeno movimento da fé põe dúvida na verdade apregoada nos últimos mil e quatrocentos anos.

A Igreja Católica Romana construiu um método de produção de discurso verdadeiro. Seu método consistia na incorporação de métodos tradicionais de composição. Tal método tradicional referenciava-se na especulação grega, em certa matriz especulativa dos helenos, e na piedade romana, tendo como centro regulatório o texto canônico, a Bíblia. A especulação grega a que nos referimos é aquela dos filósofos neoplatônicos do segundo e terceiros séculos da era cristã. Tais filósofos atualizavam a filosofia iniciada por Platão, especulando sobre o Mundo das Ideias e suas consequências, mas adotavam, em certa medida, a cosmologia aristotélica. Em tal cosmologia, o Universo é dividido em duas regiões, a sublunar e supralunar, composta por sete esferas concêntricas e em movimento circular e uniforme. Sabendo que na esfera mais exterior do Cosmos estava a esfera da estrelas fixas, que determina a fronteira e fechamento deste Universo, e no seu interior as esferas dos planetas, do Sol e da Lua. O espaço supralunar é homogêneo e formado pelo éter, não passível de mutações, alterações, começos e fins: eterno. A região sublunar é formada pela Terra e seus habitantes, os quais são constituídos por quatro elementos: água, ar, terra e fogo. Cada um destes elementos tem seus movimentos segundo sua qualidade: o fogo e o ar sobem, a água e a terra descem, ocupando, assim, seus lugares de repouso.

Na região supralunar há homogeneidade e eternidade, segundo a qualidade do ser de cada coisa, isto é, incorruptibilidade. Todos os seres (as estrelas, os planetas, o Sol e a Lua) se movem segundo o movimento circular e uniforme, o que lhes conduz sempre a retornar a seus lugares de origem. No centro deste Cosmos está a Terra imóvel. Acima da esfera das estrelas fixas encontra-se o Motor Imóvel, que move as estrelas, mas não é movido por nada. Tal Motor Imóvel é considerado por alguns estudiosos, o deus de Aristóteles. Nesta cosmologia há de se ressaltar duas coisas: primeiro que o Motor Imóvel move a esfera das estrelas fixas, a qual transmite movimento aos planetas, o Sol, a Lua, e esta transmite movimento aos seres que estão na Terra, por sua vez imóvel. Segundo, movimento, de acordo com Aristóteles, é qualitativo e não quantitativo, não podendo ser medido em metros, anos luz, ou angstroms. Um ser se move para seu lugar de repouso, assim, Aristóteles considera movimento tanto o ir de um ponto ao outro, quanto o nascer, crescer, dar cria, mudar de forma, morrer, etc. O movimento na Terra dos seres vivos e dos minerais são qualidades transmitidas desde o Motor Imóvel por meio dos Planetas, o Sol e a Lua. A alma é quem possibilita o movimento, por isso, ainda hoje, dizemos que algo é animado.

Os seres, então, ocupam um longo espectro que vai desde o Motor Imóvel até a matéria-prima. Neste momento da cosmologia neoplatônica, Aristóteles desvanece e Platão é posto em um plano mais aparente. No cume desta cosmologia esta o Ser, isto é além do Ser, e na base está o não-ser, entre ambos está a Grande Cadeia do Ser. Há apenas um encadeamento necessário e neste todos os seres possíveis de serem pensados, de tal modo que a Grande Cadeia do Ser é contínua, imutável e plenamente preenchida por meio de uma hierarquia segundo a proximidade ao ápice. Quanto mais acima menos matéria e mais Ser, quanto mais abaixo menos Ser e mais matéria. Os seres supralunares não têm matéria, mas são formados de material sutil, o éter, mas os sublunares são compostos de matéria e forma, isto é, de uma ideia que da forma à matéria. Cada “coisa” desta Grande Cadeia do Ser ocupa um lugar preciso, não podendo sofrer mutações, pois ao mudar deixaria um espaço vazio (e no Cosmos antigo não existe vácuo) assim como colidiria com outra “coisa” que já estaria ali. Tudo o que há, há desde sempre e sempre será o que sempre foi. 

Para os neoplatônicos o além do Ser é o UNO o qual contemplando a si mesmo contempla o Ser. Como um Sol que ardendo em calor e brilho ilumina-se e esquenta a si mesmo, assim é o UNO. Mas como um Sol que ao arder em calor e brilhar, irradia para fora de si luz e calor, assim o UNO emana como Inteligência. Tal Inteligência, ou Nuos, pensa os seres em particular, cada ser: o ser estrela, o seres planetas, o ser Sol, o ser Lua, o ser Terra, o ser humano, o ser cavalo, o ser sardinha, o ser limoeiro, etc. Ao pensar os seres o Nuos traz à existência o que é, por meio de uma segunda emanação que é a Alma do Mundo. A Alma do Mundo anima a matéria dando-lhe formas variadas segundo cada ser. Assim como quanto mais distante de Sol menos luz e calor se há de ter, assim também quanto mais distante do UNO, menos animado será a matéria. Desta maneira será constituída a Grande Cadeia do Ser. O ser humano ocupa a posição intermediária nesta cadeia, sendo pensado como animal racional, em que a matéria e forma se equilibram.

É neste sentido que Pico dela Mirandola nos escreve em 1450 d.C.: decretou o ótimo Artífice que àquele ao qual nada de próprio pudera dar, tivesse como privativo tudo quanto fora partilhado por cada um dos demais. Tomou então o homem, essa obra do tipo indefinido e, tendo-o colocado no centro do universo, falou-lhe nestes termos: A ti, ó Adão, não te temos dado nem uma sede determinada [...] precisamente para que o lugar, a imagem e as tarefas que reclamas para ti, tudo isso tenhas e realize, mas pelo mérito de tua vontade e livre consentimento [...] Tu, porém, não estás coarctado por amarra alguma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas mãos depositei, hás de predeterminar a tua compleição pessoal. Eu te coloquei no centro do mundo, a fim de poderes inspecionar, daí, de todos os lados, da maneira mais cômoda, tudo o que existe. Não te fizemos nem celeste nem terrestre, mortal ou imortal, de modo que assim, tu por ti mesmo, qual modelador e escultor da própria imagem segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a forma que gostarias de ostentar[...] Ó Suprema liberalidade de Deus Pai, ó suma e maravilhosa beatitude do homem!

Tendo passado brevemente por esta cosmologia básica, devemos relembrar como o conhecimento é possível. A partir deste ponto, retomar a piedade romana e como a mistura do helenismo, do romano e do cristão se unificam como Igreja Romana. Mas vamos de vagar.

*Terceira parte do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

terça-feira, junho 04, 2013

RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A FÉ EGOCENTRADA (PARTE II)

Abaixo a Parte II do texto intitulado por Marcos Nicolini*:Um esboço sobre as Religiões Cristãs desde a ideia de comunidade até a de uma fé egocentrada. Até pensamos dividir o texto em duas postagens mas, sinceramente, em todas as tentativas feitas pelo Blog, a interrupção seria abrupta e o texto perderia sua fluidez. Vale a pena ler a Parte II na íntegra. 




Pelo exposto anteriormente (parte I), podemos entender que o núcleo duro do catolicismo, pelo menos aquele do século XVI, estaria articulado sobre uma religiosidade comunitária, ainda que fortemente hierarquizada, referenciada numa tradição que remeteria ao mundo antigo; enquanto o núcleo duro do protestantismo, também aquele dos séculos XVI e XVII, sinalizaria para uma religiosidade individualizada, uma atualização de parte do espírito de alguns movimentos heréticos que até então foram silenciados. Todos os demais conceitos adotados e que visavam proteger este núcleo duro de cada um dos cristianismos, parecem advir e promover estas diferenças. Assim, Reforma Protestante e Reforma Católica apenas ressaltariam a distância nuclear entre comunitarismo e individualismo. 

Mesmo quando olhamos para a “Revelação”, a crença cristã num Deus que se dá a conhecer ao homem por meio da Palavra, podemos perceber a diferença citada. Enquanto os Católicos tomam não apenas a Bíblia, os escritos canonizados no século IV no concílio de Nicéia, e agregam a estes outros textos produzidos pela comunidade dos crentes, aceitos e respeitados por esta comunidade ao longo dos séculos, entendendo ser escritos elucidativos, conferindo um caráter coletivo, comunitário, eclesiástico à Revelação; os Protestantes segregam os escritos canônicos como sagrados, um Corpus Sagrado, e os demais escritos, mesmo os que buscam interpretar aquele, entendem como portadores de valores limitados, temporais e sem sacralidade. Portanto, para os Protestantes, a Bíblia seria um texto único, singular (Sola Scriptura). Esta canonicidade, unicidade e singularidade das Escrituras, conferida pelos Protestantes, pedirá seu preço mais adiante.

Para não cairmos no excesso de retrospectiva, tomemos alguns trabalhos contemporâneos aos séculos XVI e XVII, ou que busquem descrever os movimentos daquela época, mesmo aqueles que não tratem diretamente da religião, a fim de localizarmos esta diferença. Tangenciemos apenas alguns trabalhos e busquemos ali indícios desta distância entre comunidade e individualidade. Comecemos pela leitura proposta por Ernst Block, Thomas Muntzer, o teólogo da revolução.

Para Block (e também para Engels) Thomas Muntzer foi um comunista avant de lalettre, ao estar à frente da guerra dos camponeses em 1525. Muntzer tomou ao pé da letra o princípio do sacerdócio universal dos crentes, entendendo que no Reino de Deus não haveria hierarquias, nem dominadores e nem dominados. Para ele a Reforma deveria avançar até supressão de todo poder humano sobre o humano, questionando estas diferenciações, não apenas da hierarquia da Igreja Católica, como também a dos Príncipes. Tanto a hierarquia secular, quanto a eclesiástica seriam imposturas, quando tomadas as Escrituras como referência primária. A questão é que Muntzer faz do livre exame, assim como do sacerdócio universal, dois elementos primordiais de sua teologia e se coloca contra toda desigualdade de poder. Ao fazer isto, tenciona a Reforma de Lutero para além do limite suportável pelas elites. Martinho Lutero adota a postura do silêncio permissivo, colaborando, assim, com a nobreza que sufoca os camponeses e mata Muntzer e outros tantos. 

O que este evento nos mostra é que o núcleo duro do Protestantismo, a individualidade da salvação e da fé, o qual era protegido por um cinturão de conceitos-chave (sola fides, sola gratia, sola scriptura, soli deo gloria, soluschristus, sacerdócio universal e livre exame), estaria sob ameaça diante de uma leitura mais radical destes dois últimos conceitos. A leitura proposta por Muntzer põe a relevo a fragilidade do Protestantismo diante de possíveis ataques, tornando evidente que tal heurística, cinturão de conceitos-chaves que protege o núcleo duro, não é suficiente em si para cumprir seu papel. A Igreja da, que hoje chamamos, Alemanha passa a estar sob a guarda do Estado, institucionaliza um clero e passa a elaborar uma ortodoxia Protestante. Mas a ferida já está exposta de tal modo que a Sola Scriptura precisa da espada, do clero e de textos de apoio escritos e protegidos por este clero.

O segundo trabalho interpretativo que tangenciaremos é o de Max Weber, “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Infelizmente dá-se mais importância ao conceito de “glória a Deus intramundana”, que aponta para uma dada ética do trabalho, aquela que visa manifestar a eleição divina aos Reformados em detrimento de outros conceitos. Mas, em outras palavras, “a glória intramundana” nos fala de um indivíduo que fora eleito exclusivamente por Deus para a salvação, segundo a teologia calvinista da predestinação, o qual passa a demonstrar no mundo tal eleição, por meio de uma ética do trabalho. O cristão calvinista trabalharia mais intensamente, com maior produtividade, gerando maiores ganhos e lucros, aliando a isto uma ética estóica, isto é, abstendo-se do prazer mundano, e com isto reinvestindo o resultado de seu trabalho, não no bem-estar pessoal ou familiar, mas no próprio negócio, o que promoveria um ciclo virtuoso de acumulação de riquezas. Some-se a isto que os “não eleitos”, ou os “não predestinados”, uma vez que levam uma vida moral pecaminosa, devem ser mal remunerados a fim de não se entregarem aos prazeres mundanos. Este enriquecimento manifesta a eleição, a destinação para a salvação e destina-se a glorificar a Deus no mundo.

O que se deixa de salientar é que esta é uma ética individualizada, uma ética do trabalho que o indivíduo cristão reformado adota como parte de uma crença individual. Por outro lado, podemos perceber como nesta ética está imbricado a Sola Dei Gloria, da Sola Gratia e Sola Fides, pois a eleição por predestinação é resultado, se podemos chamar assim, da exclusiva graça de Deus, ao escolher individualmente cada um que será salvo. Uma vez salvo e crendo nesta salvação e nos valores éticos advindos daí, o indivíduo passa a viver segundo este modelo e acumula bens econômicos e sociais. Ao acumular, glorifica a Deus no mundo (intramundano). Mas, e Weber vai neste caminho, os descendentes deste cristão reformado, cuja ética do trabalho o conduziu à acumulação, não estão tão dispostos a viver uma vida tão estóica e tão voltada para a glória de Deus. E, parafraseando Weber, tornam-se indivíduos sem espírito, pouco voltados para a questão da graça divina, desinteressados na glória de Deus e crendo que se pode aliar o trabalho e o prazer. As gerações subsequentes abrem novas feridas na heurística protestante (cinturão de proteção do núcleo duro: a individualidade da salvação e da fé), mantendo, contudo intacto o próprio núcleo: o individualismo. O espírito do capitalismo seria, então, o núcleo duro da Reforma (o individualismo que congrega o trabalho e o enriquecimento), sem a heurística (a glória a Deus, a graça de Deus e fé em Deus).

Um terceiro trabalho que podemos ler, de maneira rápida, ainda que este não tenha como objeto de pesquisa questões concernentes à religião, é aquele de Benjamin Constant, “Sobre a liberdade nos antigos e nos modernos”. Neste trabalho fica salientado a diferença crucial entre um modelo comunitário e outro individualista, um da Cidade antiga e outro do Estado moderno. Contudo, pensamos que, por extrapolação, podemos salientar algumas diferenças constitutivas quando se adota uma crença do tipo comunitária tradicional e uma individualista moderna, tomando como referencia o espaço público.

Abrindo um parêntesis, há de se notar que enquanto Lutero submete a Igreja ao Estado (aos Príncipes), sinalizando para uma dimensão privada para a religião, ainda que não possamos falar do Estado como dimensão pública; Calvino procura manter a Igreja no interior da esfera pública procurando manter a influência da religião na formação do Estado e das leis. Os modelos eclesiásticos entre os Protestantes não são homogêneos, mas guardam diferenças.

Retornando a Benjamin Constant, podemos notar a diferença dada por este liberal à liberdade que gozavam os antigos (Atenas e Roma) e aquela que os modernos de sua época estavam procurando. Segundo Constant os antigos entendiam que um homem livre era aquele que era cidadão de uma cidade livre e sua liberdade era exercida como participação dos negócios públicos. Em outras palavras, um homem livre era aquele que vivia numa cidade que se organizava sob leis que os próprios cidadãos prescreviam para si e tal liberdade consistia na divisão do poder social entre todos os cidadãos. Resumindo, somente se pode ser livre ao viver numa cidade que faz suas próprias leis e esta constituição da cidade se faz pela divisão do poder entre os cidadãos. Ou seja, a liberdade dos antigos é uma constituição da Cidade e não do indivíduo.

Mas, segue Constant, a liberdade dos modernos tem como referencia o indivíduo, e subtendia-se a liberdade como desimpedimento, chamada de liberdade positiva. A liberdade é o direito de fazer, sem impedimento, aquilo que se há de fazer. Claro que podemos ir além neste conceito e pensar nos limites que uma comunidade dará à liberdade individual, e nos deveres que a civilização imporá sobre cada um de nós. Mas, a liberdade que a modernidade liberal proporá é a de que o indivíduo goze seus prazeres privados. Em Hobbes e Locke, mais acentuadamente, o que está em jogo é a ampliação do gozo dos bens privados por meio das garantias dadas pelo Estado. Assim podemos resumir que a liberdade dos modernos é a do indivíduo por meio do Estado, enquanto dos antigos é a liberdade da Cidade pela divisão do poder pelos cidadãos. Citamos, apenas de passagem, a fala de Constant: “A independência individual é a primeira necessidade dos modernos; por conseguinte, não se pode pedir o sacrifício dela para estabelecer a liberdade política.”

Uma vez que a modernidade referencia-se na individualização, podemos perceber o distanciamento que esta referência assume frente a uma religião do coletivo, que adota como liberdade do indivíduo a liberdade pela Igreja, a salvação do indivíduo como salvação na Igreja, a sabedoria do indivíduo como sabedoria de um conjunto de textos produzidos e guardados pela comunidade eclesiástica. Por outro lado já encontramos no Protestantismo fissuras produzidas por movimentos internos a este Protestantismo. Podemos perceber uma heurística, cinturão de proteção do núcleo firme, frágil e que requererá constantes transformações. A religiosidade Protestante cismática atravessará os séculos transformando-se e buscando referencias para um conjunto frágil de proposições. Por um lado enfrentará uma Igreja Católica referenciada em tradições, ou seja, numa comunidade secular de crenças, por outro lado enfrentará a modernidade em diversas frentes, tanto política, quanto científica, e por fim enfrentará sua tendência cismática e individualista.

*Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.