domingo, julho 28, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VIII


Platão é acusado pelo trabalho de expulsão do poeta da Cidade. O poeta que ele tende a expulsar é Homero, antes, a poesia que é confrontada por ele é a homérica. Expulsa-a não porque se volte para os deuses e os mitos, mas porque a conduta divina não é imitavel, digamos assim, não favorece a justiça na Cidade. Os atos de traição, vingança, ódio, injustiça, inveja, etc. não devem ser imitados pelos homens. Não nos esqueçamos que Aristóteles, mais tarde, contudo não colidindo com seu mestre, dirá que o homem é um animal que imita. 

Platão não expulsa os deuses, antes, aponta para uma teologia que seja produto, resultante do trabalho de contemplação, do filósofo-rei, do Mundo das Ideias. Não são os deuses que devem ser expulsos, mas uma poesia que produzindo uma teologia mítica integra-se com a teologia política, propiciando aos homens políticos condutas injustas. Mas tal contemplação defendida por Platão pretende trabalhar, ainda, a partir da teologia mítica, da teologia politica e da teologia natural, conforme a matriz tradicional que deveria preservar. 

Contudo, Sócrates, a quem Platão concede a voz, é acusado de impiedade, isto é, de não respeitar os deuses e perverter os jovens, em outras palavras, não observar as tradições. Piedade é a observação das tradições da Cidade: dos deuses, dos antepassados e das leis. Quando, podemos pensar assim, ele apenas procura a preservação da Cidade, acatando as consequências de sua piedade, isto é, morrer segundo a determinação do julgamento feito pela Cidade, tomando do veneno da cicuta. Sócrates não é moderno, isto é, alguém que fomentando uma novidade torna-se ímpio; antes, Sócrates é pio, quer preservar a Cidade em sua tríade teológica fundamental: natural, política e mítica. O que o Sócrates de Platão faz é propor novas narrativas míticas, que legitimem uma ordem política mais justa, que esteja integrada ao cosmos, à physis/natureza. Mais ainda, que a natureza e suas paixões, a ordem política e os deuses estejam todos sob a justa, bela, boa e verdadeira ideia.

Quando falamos de tradição devemos lembrar da Ilíada e da Odisseia. A Ilíada nos fala de uma parte da guerra travada entre os aqueus, a quem os romanos nos ensinaram a chamar de gregos, e os troianos, os habitantes da Cidade de Illia, aquela de muros intransponíveis, posto terem sidos feitos por Poseidon. Tal guerra é motivada pelo condução (forçada ou voluntária) de Helena, esposa do basileus de Esparta Menelau, para Tróia ou Illia, por Paris ou Alexandre, filho do basileu Príamo. A Ilíada narra prioritariamente a Aquiles, o herói aqueu, mas nos concede a possibilidade de conhecermos o mundo antigo e parte de sua cultura. O poema já parte do meio da guerra e não chega ao fim dela, mas à morte do herói que jaz em glória, eternizando o nome. 

O poema de Eurípedes, Ifigénia em Aulis, nos permite saber que os exércitos aqueus se reuniram na Grécia, mas a ausência de ventos os impediu de se dirigirem à Tróia, localizada no que hoje chamamos de Turquia. O basileus que organizara a expedição consultou os oráculos a fim de saber o que seria necessário para aplacar os deuses e possibilitar a travessia. Era necessário o sacrifício de sua filha Ifigénia aos deuses. Ifigénia foi trazida ao acampamento dos aqueus sob a falsa notícia de que iria se casar com Aquiles, mas foi surpreendida ao saber que seria morta pelo pai. Conta o mito que ela foi sacrificada aos deuses que se agradaram do holocausto, chamemos assim, fazendo retornar os ventos, possibilitando a continuação do movimento bélico contra Tróia.

Os sacrifícios faziam parte da cultura mediterrânea, mas de maneira diferente para diferentes Cidades. O mito da criação do mundo, do cosmos grego está envolto pela origem a partir do derramamento de sangue. Sem sangue não há criação, a origem é cruenta. Diferente é o mito da criação do mundo por parte dos israelitas. Para eles o mundo é obra da fala dos Helohym. No princípio Helohym disseram...e houve. O sacrifício sangrento ocorre após aquilo que os cristãos vão chamar de pecado, e não como obra criadora. O sangue é um artifício apaziguador e não fundador.

Retornando à épica homérica, a Odisseia nos narra o retorno do herói Ulisses à sua terra Ítaca. Após vencerem as guerra e de posse dos despojos e dos escravos e escravas (como nos conta o poema As Troianas de Eurípedes), aqueles guerreiros gregos retornarão às suas Cidades. Ulisses tem seu retorno narrado na épica Odisseia. O herói astuto deve passar por inúmeros desafios, dentre eles ir ao Ades e se encontrar com Aquiles. Também se encontrará na terra dos Ciclopes, os monstros de um olho só e confrontará a Polifemo, o guardador de ovelhas. Se a civilização era o complexo geográfico e cultural, digamos, tradicional definido pelas Cidades gregas, os estrangeiros eram os Troianos, com deuses similares, mas com tradições distintas e os bárbaros eram os Ciclopes, monstros que não viviam em cidades, não conheciam o vinho, ou seja, toda uma ordem de produção que exigia o controle do tempo e das estações. Ulisses, para escapar dos monstros bárbaros, diz-se chamar “ninguém” e assim inverte a lógica civilizado-bárbaro, confundindo aquele que deve ao fim perder a visão de um olho só.

Se na Ilíada os aqueus são os vencedores de uma guerra épica que expõe frente a frente o melhor (aristos) filho da Grécia, Aquiles e o melhor filho de Troia, Heitor, demonstrando a supremacia do herói grego sobre o melhor guerreiro dentre os estrangeiros (xenos), na Odisseia a astúcia intelectual de Ulisses é o recurso heroico que possibilitará aquele herói retornar a Ítaca e rever sua esposa Penélope. Assim, estas duas obras poéticas de Homero salientam a supremacia grega na arte bélica e na astúcia, ou a capacidade de prevalecer pelo uso do intelecto. O homem grego é, então, o melhor homem, segundo esta teologia mítica de Homero compilada por volta do século VII a.C.

No século I a.C. Virgílio escreve sua épica Eneida como uma obra que visa ser um narrativa mítica segundo a tradição homérica, encomendado pelo imperador romano Augustus. A Eneida narra os feitos heroicos de Enéas, herói fundador do que virá ser Roma e toma como matriz poética a Odisseia e a Ilíada, sintetizando num único volume estas duas obras. Enéas seria filho de Anquises com Afrodite e sobrinho de Príamo, rei de Tróia. O herói sobrevive à queda da Cidade, fugindo dali com seu pai nas costas, carregando uma estátua do deus troiano, juntamente com sua esposa Creusa e seu filho Ascânio. Seu epíteto (neste caso é o que é acrescido ao nome e que o qualifica) será repetidamente de “o piedoso”, marcado pela imagem de quem guarda os deuses, os antepassados e a lei da Cidade.

Enquanto o herói romano tem como qualificador a piedade, os gregos da Eneida são marcados pela impiedade. A tomada de Tróia é marcada pela vileza de Ulisses que engana os homens com um presente aos deuses, um Cavalo oco de madeira, acentuando a mentira. A queda de Tróia é retratada pela crueldade dos guerreiros aqueus que violando as leis de guerra matam a Príamo, rei idoso que abraça a imagem marmórea do deus, matam-no ali mesmo em sua súplica. A impiedade grega é contraposta a pia imagem do herói romano. Esta é a grande inversão da narrativa de Virgílio a partir da matriz narrativa de Homero. Enquanto Homero narra a supremacia bélica e da astúcia heroica dos vitoriosos gregos, a narrativa de Virgílio acentua a supremacia romana a partir da imagem da piedade. 

Apreendido este deslocamento narrativo desde a épica homérica, aquela que se funda na glória (kleos) do herói grego como o melhor (aristos) na guerra e na astúcia, até a épica virgiliana que se funda na piedade romana como guarda dos deuses, dos antepassados e da tradição, podemos perceber a produção de uma teologia mítica que estará imbricada numa teologia política e numa teologia natural que legitimará o poder da Cidade Eterna. Este deslocamento permitirá ao mesmo tempo deslocar o centro epistemológico da narrativa, como manter intacto o edifício narrativo. A épica homérica é, então, reproduzida por Virgílio em detalhes que vão desde a guerra de Tróia – no caso o fim da guerra e a suposta vitória dos aqueus – até a viagem de Enéas até a Itália – num paralelo sensível com a viagem de Ulisses até Ítaca. O herói romano também conhece os estrangeiros e os bárbaros, aqueles com quem se une e com quem digladia, e também aqueles que devem ser eliminados, destruídos. Também o herói desce ao Ades e vence o esquecimento da morte.

Este movimento circular com o simultâneo deslocamento do centro epistemológico também garantem aos romanos uma legitimação da narrativa de sua supremacia posterior sobre os gregos. Em outras palavras, é o retorno do oprimido como vencedor sobre o opressor. Retorno este legitimado não mais apenas sobre o ser um melhor guerreiro ou um homem mais astuto, ou seja, um homem melhor, mas legitimado pela piedade, isto é, a tradição. Roma é a Cidade cujo fundamento é a piedade e a partir da piedade ergue-se um edifício ordenado pelo que é mais sagrado: os deuses, os antepassados e as leis.

Aos hoplitas e às falanges gregas, que conhecemos, após os heróis gregos e fundadores da ekklesias bélicas, Roma funde uma forte hierarquia social de matriz militar com uma indiferenciação das centúrias romanas. Contudo, a questão que nos importa salientar no momento é que Roma é a vingança dos deuses de Tróia contra os ímpios aqueus que ultrajaram as leis da Cidade antiga. Como um Édipo Rei que ultrajando as leis de Corinto traz sobre si e sobre a Cidade a desordem, mesmo vociferando contra as tradições conhece um fim trágico, também os gregos conhecem a espada e a soberania romana. Mas se os gregos perdem a liberdade para os piedosos romanos, os romanos mantém intacto a ordem tradicional que herdaram da Grécia. A história conhece, então, menos um movimento progressivo e mais uma circularidade.

Roma deverá guardar a tradição, pois é a partir dela que sua teologia mítica operará. Roma não poderá esquecer de absorver o legado daqueles que triunfaram no passado, mas criticará o tendão de Aquiles que os fez perecer no tempo. Enéas levará até a Itália o deus que trouxe desde Illia, assim como o fogo que não pode apagar, até que estes encontrem o seu lar, a propriedade dos romanos. Roma herda de Tróia a memória da impiedade dos aqueus e herda dos helenos o ordenamento racional.

domingo, julho 21, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VII



No ponto em que estamos desta nossa leitura perspectivada, podemos nos deixar levar por inúmeras tentações. Podemos ser levados pela tentação de uma crença progressista da História. Também podemos ser levados pela tentação de uma crença numa lógica dialética da História. Estas duas vias nos fazem acreditar num movimento determinista e determinado para a história, como se um Espírito a conduzisse transmutando-a em História.Um a priori e um fortiori conduzindo os fatos. Por uma terceira via, podemos ser levados pela tentação de uma crença em ciclos históricos que surgem, conhecem sua maturidade e se esgotam, com se fossem acontecimentos autóctones e sem legado. Estas três tentações se nos pode ocorrer quando pretendemos nos mover desde o Peloponeso até a Itália.



A crença progressista, tanto da história quanto da ciência, apresenta-nos o mito de que a humanidade acumula conhecimento, antes, o conhecimento se dá por acumulação. A ciência é um ser guloso e obeso como um buraco negro. Ontem sabemos menos do que hoje e amanhã saberemos ainda mais. A ideia aqui presente é que não há perda e nem transformação do conhecimento ao longo da história. Some-se a isto o mito, aquele que poderemos ter uma clareza maior quando passarmos pelo neoplatonismo e pelo gnosticismo cristão, de que a verdade é como se uma cebola tivesse um núcleo. Progressivamente vamos descascando a cebola, isto é, retirando película a película que cobriria o núcleo, até que este fosse plenamente descoberto. Neste sentido, o progresso científico e a descoberta científica são os dois lados de uma mesma moeda. Assim, a teologia mítica, a teologia política e a teologia natural possuem um núcleo metafísico duro, um fundamento último que num processo metodológico racional será desvelado e revelará a verdade clara e distinta. Como diria o apóstolo Paulo: hoje sabemos em parte, mas amanhã veremos face a face. Em outras palavras, a verdade está oculta, velada, mas a razão humana progressivamente irá, por uma metodologia científica, desvela-la, retirar-lhe o véu. Podemos, assim, nos tranquilizar, pois o fim, que já sabemos de antemão,e apesar dos problemas no transcurso há a garantia, será alcançado e nos levará a uma plena felicidade. É o legado grego-cristão das palavras de Jesus: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Mas as cebolas não têm núcleo, apenas finas lâminas.



A lógica dialética da História também parte da crença, porque não dizer religiosa, de que há um processo histórico inexorável movido pelo Espírito. Joaquim de Fiori (1132-1202), místico cristão do séculoXII inspirou, em certo sentido, não apenas Hegel como, ainda que indiretamente, Marx. Joaquim foi Abade em Fiori e propôs que a história da humanidade se processaria em três eras: a do Pai, de acordo com o Velho Testamento, de um Deus poderoso, vingador e temível; a do Filho, de acordo com o Novo Testamento, de um Deus amoroso e revelado entre nós; a do Espírito, com a fusão do indivíduo e da ordem. A sociologia positivista de Auguste Comte também parece ser herdeira deste pensamento religioso, ou, é uma expressão secularizada da mítica de Joaquim, que encontra na era da razão um mundo sem a superstição religiosa. Há uma forte crença escatológica nesta elaboração, isto é, uma racionalidade da História que a faz culminar num evento último. Evento este que faz dissipar toda ordem tradicional instituída em prol de uma ordem mais justa. Desta escatologia hegeliana podemos ter dois caminhos para a História: se apostarmos num Espírito diluído entre todos os homens, como mônadas, podemos pensar no individualismo anarquista,quando aliado à supressão da propriedade privada; se apostarmos num Espírito manifesto no Estado, o lugar irradiador do poder, então teremos outros dois caminhos: o comunitarismo com supressão da propriedade privada, pela via marxista, ou o nacional socialismo, um tipo de Estado marcado pelo mito de origem, dos deuses.


Até aqui pensamos seguindo uma imagem do tempo linear, do tipo agostiniano, isto é, neoplatonismo cristianizado. O tempo como sucessão de instantes homogêneos, onde o presente é um instante entre o passado e o futuro. Cada instante de tempo é absolutamente idêntico ao anterior e ao próximo, mas é marcado pela História. Não é assim, porém, no pensamento antigo antes do cristianismo. Na Grécia e mesmo em Roma o tempo era pensado ciclicamente. Platão e Tulcidides pensam os regimes políticos passando da Oligarquia, Aristocracia, Democracia e Tirania e retornando, numa sucessão cíclica. Platão, na República, pensará um modo de sair deste movimento, posto que ele está olhando para as estrelas, mas busca além delas um Mundo não sujeito à corrupção. Filho desta concepção antiga são as crenças em ordens que respeitem ciclos bem definidos de surgimento, crescimento, amadurecimento, declínio e morte. Conforme dissemos acima, parece que estes ciclos surgem do nada e ao nada retornam, não sendo tributários de nenhuma tradição anterior e nem deixando qualquer legado posterior. Como se seres alienígenas tivessem deixado na Ilha de Pascoa crianças que conseguiram sobreviver e inventaram uma maneira de viverem em comum, e ao fim de um tempo aquela civilização tivesse deixado de existir. Não é assim que ocorre.

Embora estes crenças estejam bem arraigadas em nosso senso comum, podemos ver suas limitações ao exigirem de nós que nos abstenhamos de questionar a capacidade de explicação e de previsão, antes, a sua baixa aderência ao dado empírico e a impossibilidade de prever fatos futuros. Ao exigirem de nós fundamentos inquestionáveis. Precisamos, então, de um modelo que incorpore a imprevisibilidade de futuro, mas que nos permita perceber o eco do passado no presente. Mas do que a imprevisibilidade de futuro e eco de passado, o modelo deve nos fazer perceber que a história não se dá por necessidade, mas por linhas de força e arranjos. Podemos, então, tomar algumas metáforas e perceber como elas nos permitem compreendera história em seu dinamismo, em que o passado e o futuro sejam-nos como matérias-primas na construção de mundo, mas que esta construção de mundo não está subordinada a qualquer Espírito, princípio ou eterno retorno.

Martin Heidegger em seu texto “O que é uma obra de arte” nos diz (aqui apenas buscamos uma paráfrase) que na passagem do grego para o latim perdeu-se muita coisa. Há muita tensões nestas palavras, mas antes de aborda-las, tomemos uma primeira metáfora do próprio Heidegger. Usando a metáfora do círculo, nos diz o filósofo que ao buscarmos o conhecimento sobre algo não o fazemos arbitrariamente, mas já interessados por um interesse que não nos pertence, não é nosso, não o produzimos. Interesse que para ele nos remete ao “meter-se em meio à coisa”. Interessamo-nos por algo, passamos a conhece-lo, transformamos o objeto conhecido e nos transformamos, e retomamos ao ponto do interesse, fechando o círculo.

Mas esta metáfora poderia nos sugerir que em tal círculo haja um centro, um lugar fixo e que fixe o movimento a partir dele, tal qual para os antigos o Universo girava em círculos ao redor de um ponto fixado: a Terra. Nesta caso, não mais a Terra, mas o sujeito. Mas aqui é que devemos tomar a segunda metáfora, aquela apresentada por Jacques Derrida. O filósofo francês nos fala que este círculo é como uma elipse, isto é, quando completamos o círculo o centro sofre um deslocamento, de tal modo que não retornamos ao ponto inicial. Não há fixidez ou fixação do sujeito do conhecimento. 

Mas para percebemos as consequências desta segunda metáfora sobre a primeira, devemos tomar uma terceira, e neste caso antecessora das duas primeiras, mas que nos auxilia no entendimento da ampliação que resulta destas. Nicolau de Cusa, cardeal da Igreja no século XV escreveu a “Douta ignorância”, em que defende a ausência de centro fixo no Universo. A defesa que ele faz desta tese é simplesmente radical. Hoje se quer damos conta da radicalidade daquele pensamento, já que para nós o Universo é descentrado. Diz-nos o clérigo que para traçarmos uma circunferência precisamos de um ponto central e de um raio, assim a circunferência é a curva em que todos seus pontos estão equidistantes do centro a uma distância igual ao raio adotado. Então, acrescenta, que se estivermos pensando numa circunferência de raio infinito, todos os pontos estarão a uma distância infinita do centro, e mais ainda, o raio será tão infinito quanto o diâmetro, e mais ainda, que qualquer lugar neste Universo infinito estará a uma distância infinita da circunferência que o inscreveria. Portanto, qualquer lugar deste Universo é o centro do Universo, logo não há centro de um Universo infinito. Nicolau não apenas desfaz a ideia de centro do Universo, aquele que era ocupado pela Terra, como desfaz da ideia de um Universo finito e fechado, como queriam os gregos, os romanos e os cristãos.

A consequência, então, para nós é que a história não teria um centro sobre o qual giraríamos, mesmo que este centro fosse passível de deslocamento. Isto não significa que não possamos adotar um centro, mas este não é universal, válido sempre e para qualquer um. O centro que adotaremos é um centro que permite-nos dar sentido a nossa narrativa e permite-nos apenas trazer certa coerência, mas em momento algum determina a verdade histórica. Interessamo-nos pelo movimento no tempo e que chamamos de história, mas este interesse reclama de nós um conjunto de ferramentas e instrumentos de análise, isto é, referências, também suscita objetivos e métodos. Este interesse põe em questão s ferramentas, os instrumentos, os objetivos e os métodos, fazendo deslocar o centro adotado e o próprio objeto e o pesquisador.

Em termos de uma possibilidade histórica, diríamos que os romanos fazem uma leitura dos gregos, segundo seu próprio centro, transformam os gregos segundo seus interesses e recolocam-nos um grego latinizado. É neste sentido que lemos a frase parafraseada de Heidegger: a passagem do grego para o latim há perdas. A leitura que Cícero, Virgílio e outros fazem dos gregos, não é grego. Assim como a leitura que os pais da Igreja cristã fazem dos escritos do Velho Testamento, do Novo Testamento, dos gregos, dos romanos e dos neoplatônicos, não pertence àqueles escritos. O que nos parece é que o pensamento Histórico determinista, quer segundo a crença no Progresso, quer na Luta de Classes, quer na circularidade, ou na degenerescência trágica, ou outro método que pretende o controle e a previsibilidade do futuro, determina uma dada epistemologia. Epistemologia esta que se funda num dado último e incorruptível, numa verdade. O que pretendemos é ver na história esta possibilidade criativa e incontrolável.

Feita esta passagem rápida podemos voltar aos nossos antigos. Podemos fazer uma leitura que aproxima e distancia os gregos e os romanos. Podemos começar com Homero e Virgílio, depois Platão/Aristóteles e Cícero, e por fim Catulo.

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

domingo, julho 14, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VI


Aristóteles em sua arte poética nos diz que o homem é um animal que imita. Talvez nunca consigamos sair deste círculo desvirtuoso. Quando Jesus, reconhecido pelos seus primeiros amigos como Cristo, isto é, Messias, disse, “se lhe derem numa das faces, ofereça a outra”, estava apontando para a quebra do ato mimético, da violência mimética. Em lugar de proceder tal qual o agressor retribuindo a violência com a violência, e com isto perpetuando-a, Jesus, o Cristo reconhecido, diz que da violência somente se sai pela não violência. Ora, estava ele criticando abertamente a lei de Moisés, para quem “olho por olho” era a regra referida. Mas esta regra não o era apenas no interior das fronteiras hebraicas, mas era regra geral dos povos que hoje imitamos: Egípcios, Gregos, Romanos, Persas, etc. Nossa teologia política, mutatis mutantis, nossa filosofia política ainda segue a regra mimética da violência, ainda que tenhamos dito que não.

O modelo político grego tem intrigado muitos estudiosos por ser, aparentemente único na história da humanidade. A democracia, o poder de muitos como nos falam os antigos, contudo não é uma descoberta grega, mas está presente, por exemplo, nos povos nórdicos, os chamados vikings. Também é possível pensarmos em povos sem Estado em que os membros destas populações organizam a vida em sociedade sem a existência de um poder central, como foi o caso de povos aborígenes no Brasil, como nos conta Pierre Clastres (A sociedade contra o Estado). Porque então o modelo grego e romano nos intriga? Não saberia responder, ainda que tenha colocado a questão. Mas é possível que a questão mimética, traduzida como tradição, possa ser uma chave.

Lembremos que Aristóteles relata seu mito político, no qual a Polis, a Cidade é quando um “oikos” (uma casa) se junta a outro “oikos”. Qual a questão ai? Cada “oikos” tem seu poder fundado no poder do “despotes”, ou, do pater família, ou ainda, do “basileus”, um rei em sua casa. Se no “oikos”, na dimensão privada de sua casa o pater família pode exercer seu poder despótico como “basileus”, ao encontrar-se com outros “basileus” ele se encontra com outros iguais, portanto, pode e deve ser deles amigo, exercer a “philia”. A “Polis” é quando um “oikos” se junta a outro “oikos” e o “basileus” não pode exercer na cidade o mesmo poder que ele tem em casa. No “oikos” o “basileus” exerce o poder de “despotes”, isto é, o poder privado baseado em uma hierarquia que vai desde si, passando pela esposa(s), filhos, chegando aos escravos e animais e coisas. Mas, ao juntar seu “oikos” a outro “oikos” deve negociar seu poder com outros “basileus” que igualmente tem o mesmo poder de “despotes”, e o deve como amigo, “philia”. A “philia” somente existe entre “despotes”, quer na categoria de oligarcas, quer na de aristocratas. Este poder que será exercido entre amigos será o poder na e da Polis, o poder público. Desta maneira temos a separação grega entre o privado (poder despótico) e o poder público (poder entre “basileus” amigos). As regras de convivência entre os “oikos” e os “basileus” devem ser discutidas em assembleias, as “ekklésias”.

Abrindo um breve parêntesis, devemos salientar a singularidade de um “oikos”. Um “oikos” mais do que uma casa e sua ordem hierárquica, era um espaço sagrado. Ao centro do “oikos” havia o lar. O lar era um espaço de devoção no qual se encontravam as estátuas dos deuses domésticos, dos antepassados e do fogo sagrado, o qual nunca poderia ser apagado. O “oikos” era a propriedade de uma família, era próprio de uma família. A propriedade da terra estava imbricada com a família, e esta com o lar, os antepassados e os deuses, assim como o fogo sagrado. A totalidade desta ordem privada e doméstica que aqui esboçamos era chamada de “oikonomia”, ou, em nossa linguagem, economia ou ainda administração. A economia era essa administração das coisas domésticas segundo uma dada hierarquia centrada por em espaço sagrado do lar, determinando certa propriedade: isto era para os antigos a “oikonomia”. Juntar um “oikos” a outro “oikos” era encontrar certa identidade de tradições, de língua, de deuses e de antepassados. A Polis de Atenas encontrou na deusa-macho Palas Atenas e em Zeus, o deus do Olimpo, esta síntese dos lares. Fechamos parêntesis.

“Ekklésia” que será traduzida para o termo latino Igreja. A “ekklésia” não é o espaço físico, mas a dimensão de encontro entre “basileus”. O espaço físico era a “ágora”, a praça, o lugar onde os homens se encontravam e debatiam seus problemas. Os homens saiam de seus “oikos” nos quais exerciam seu poder despótico e iam para a “ágora” para se encontrarem como “ekklésia”. Por isso a “ekklésia” trás o sentido de um sair para fora, um sair do “oikos” para um encontro na “ágora”, do espaço privado para o público. Este encontro com o respectivo debate público é a “ekklésia”. Quem poderia participar da “ekklésia”? Esta é uma pergunta pertinente e sua resposta nos leva para um tempo anterior, pois somente os homens que tivessem as armas e as vestimentas de guerra e pudessem usa-las, podiam participar da “ekklésia”.

Um dos momentos marcantes do poema homérico, Ilíada, é o encontro belicoso entre Aquiles e Heitor. O que se passa ali? Inúmeras coisas poderiam se destacar, mas salientemos apenas duas: primeiro, que a glória de um homem, o que o faria ser lembrado para além de sua existência física como um homem digno de ser lembrado em imitado, a glória (“kléos”) se obtinha na batalha. Morrer na guerra era morrer em “kléos” e com isso ser honrado pela memória. Se a biografia de um homem estava marcada pela biografia de seus antepassados e atrelada à da sua Polis, a “kléos” lhe daria um nome único, uma marca individual. O segundo ponto que podemos destacar está em que são dois homens lutando em nome de duas formas, estruturas distintas de Estado. Heitor luta por Tróia, a Cidade de muros inexpugnáveis, pois fora obra do próprio Poseidon, deus dos mares, Aquiles lutava pelos aqueus, pelos “basileus” reunidos em torno de Menelau. Aquiles, Ulisses, Menelau, Agamenon, etc. são “basileus” gregos que se reúnem em “ekklésia” e deliberam partir em guerra contra a Ilia. Dois homens se encontram e, em certo sentido, definem a sorte da guerra. O melhor dos aqueus, Aquiles, e o melhor de Tróia, Heitor. Ainda que Aquiles tenha profanado o templo de Apolo, é em favor dos aqueus que os deuses se voltam e conferem a vitória. Dois outros aspectos a salientar: primeiro, que nenhum “basileu” era obrigado a ir à guerra, mas era livre para ir e sair, mesmo tendo participado da “ekklésia” na qual se deliberou a guerra; segundo, os despojos de guerra eram repartidos entre todos os “basileus”, segundo regras de guerra determinadas por tradição ou por “ekklésia”.

Encontramo-nos com a proto-democracia grega, quando “basileus” se encontravam em “ekklésia” para definir a guerra e a paz, e depois da guerra, para determinar a partilha dos despojos. Como eram homens em igual posição social, um não podia se sobressair sobre o outro, a palavra era franqueada a qualquer um e as discussões eram livres e igualitárias. Mas, dizem os pesquisadores, há um passo a ser dado. A transformação da guerra. Os helenos desenvolveram uma nova tática de guerra: os hoplitas, mais ainda, a invenção da guerra em falanges com os hoplitas. Enquanto da era clássica os Heitores enfrentavam os Aquiles em busca de glória individual, na antiguidade grega estes foram substituídos por soldados marchando lado-a-lado, ombro-a-ombro, empunhando lanças, espadas, escudos, couraças e capacetes. Um bloco unido e homogêneo de soldados. 

A batalha no estrito de Termópilas (filme “Os 300 de Esparta”), retrata esta mudança tática da guerra helênica. Aquela narrativa trata de mostrar a superioridade da falanges e dos hoplitas sobre as formas tradicionais de guerra. Blocos compactos de soldados coesos e indiferenciados, comprometidos antes com o todo do que com sua própria glória. As falanges com poucos homens racionais e livres, contra os milhares de servos de um tirano. Ainda hoje somos tributadores do mito da igualdade e da racionalidade bélica. Se da “ekklésia” clássica a democracia herdou o direito igual à palavra a fim de se definir as regras da guerra, da era antiga os gregos herdaram a posição igual de todos na “ekklésia”. A “ekklésia” é o encontro de homens livres que tem o mesmo direito à palavra (isonomia) e mesma posição diante dos parceiros (isegoria), na qual se debatem as normas de convívio comum na Polis (público), os investimentos bélicos e monumentais na Polis, a guerra, os impostos, os despojos, e tudo que concerne à vida pública, ao domínio da Polis, da política.

A medida que se percebeu a eficácia das falanges e dos hoplitas, que lutavam não apenas por suas vidas e por sua glória individual, mas pela falange, pelo companheiro ao lado, à frente e atrás, as Polis arregimentaram outros homens, gregos, mas não ricos e nem nobres, antes, gregos pobres, os “demos”. Assim, homens ricos, nobres e pobres lutavam lado-a-lado nas falanges como hoplitas. Todos fazendo jus aos despojos de guerra, todos podendo participar das assembleias, todos podendo falar e estando diante de cada um. A isonomia e a isegoria foi estendida, gerando o conceito de democracia, o poder de muitos. A democracia é filha da guerra. A democracia é um problema para Platão, que vê nela uma degradação da Polis, pois esta deve ser governada por Um, o filósofo-rei. A democracia é um problema para Aristóteles, que hierarquiza os homens definindo cidadania ao ricos e nobres e subcidadania aos pobres.

Mas se a guerra pode ser uma chave de compreensão do Estado grego, as hierarquias sociais não podem ser entendidas apenas por razões econômicas, como nos informam alguns historiadores. Se uma Polis grega tinha homens ricos e pobres, também tinha cidadãos e “xenos” (estrangeiros, homens de outras Polis gregas), assim como bárbaros (escravos em linhas gerais). Um estrangeiro podia ser um homem rico, ou mesmo um homem virtuoso. Contudo, um “xenos” nunca seria um cidadão. Assim, a cidadania era definida por dois aspectos: uma hierarquia que partia da riqueza/nobreza, passava pelo pobre, até o escravo; uma hierarquia que partia do local de nascimento do homem e seus antepassados, passava pelo “xenos” até o bárbaro. Uma análise simplista a partir da ótica puramente econômica não explica as hierarquias nas cidades gregas. Antes devemos separar o privado do público, no espaço público devemos tomar a questão econômica e a ligada às “gens”, à pertença de um indivíduo a uma cidade grega ou não.Mas a “gens” não era definida apenas pelo nascimento, mas por uma cultura que passava pela língua, pelos deuses, pelos antepassados, pela tradição compartilhada.

Para o grego havia dois tipos de guerra. A dualidade era um método epistemológico para o conhecimento, e isto vemos presente na dialética platônica e em Aristóteles, também. Um grego poderia fazer guerra com outro grego, com um xenos. Tais confrontos não visavam a destruição do outro, pois este seu inimigo era seu amigo. Aquele outro grego de outra Polis era um igual, com mesma língua, tradições e panteão. Tais confrontos visavam mostrar quem era mais forte, hábil e merecedor de “kléos”. As Olimpíadas gregas traduziam este sentido de ser mais forte, ir mais longe e mais rápido. As Olimpíadas traduziam este ideal de teoria, de contemplação dos deuses nos heróis olímpicos.Um grego poderia fazer guerra com um não grego, um bárbaro. Um bárbaro não era um igual, mas um inferior, ao não possuir a razão, não falar a língua grega. O bárbaro de então se assemelha ao aborígene americano no século XVI até o século XXI, e suas terra com as terras das Américas. 

Nos escritos gregos clássicos e antigos que tratam da questão das fronteiras, está claro o tratamento que dão a estas quando seus vizinhos são outros gregos (“xenos”) ou são bárbaros. Quando as terras de um grego tem como lindeiro outro grego, as descrições de fronteiras são pormenorizado, detalhado com máxima precisão. Quando as terras de um grego tem como lindeiro um bárbaro, não há descrição alguma, como se suas terras terminassem em abismo, como se elas se abrissem ao infinito desconhecido. A visão cósmica de um grego também acompanha este modelo epistêmico: no centro do Cosmos a Terra, depois as sete esferas fixas, sendo a última a esfera das estrelas fixas, após ela o Motor Imóvel, e depois nada... O mundo grego é um Universo fechado, isto não quer dizer que seja limitado, apenas que tudo que a ele pertence e é conhecido e submetido a seu poder, isto existe; tudo mais não existe, até que um grego vá até lá.

Esta é a narrativa homérica da Odisséia. Ulisses deixa Tróia em direção a seu lar, Ítaca e sua mulher Penélope. Mas os deuses o leva a lugares desconhecidos e ao encontro de bárbaros de um olho só, que não são racionais, estando diante do herói grego como alguém que se pode dispor, pode-se matar, roubar, enganar, sem que com isto fira qualquer ética ou moral. É exatamente esta relação com um mundo fechado em suas razões tradicionais que Jesus o Cristo se voltou contra e para além do privado e do público, separou o violento mimético, do que “ágape” aquele que está próximo.

PARTE VI do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

terça-feira, julho 09, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE V





Há, nos textos de pensadores da antiguidade, uma presença repetida do tema da amizade. Mas, para que possamos nos referenciar melhor sobre a importância da amizade na constituição da Cidade, traduzida pela abordagem de Platão, Aristóteles, Cícero e Agostinho, na antiguidade e por Tomás de Aquino no medievo, devemos precisar as diferenças daquela afetação da alma que chamamos de amor. Sabemos que o amor, na língua grega antiga, era expresso por três palavras: philia, éros e ágape, cada qual apontando para uma maneira de relação. Para precisarmos melhor o uso no tempo destas palavras e aquilo que elas pretendiam dizer, tomemos inicialmente o sentido dado pelos cristãos.

O ágape será amplamente utilizado pelos cristãos que entenderão este tipo de amor como aquele expresso por Deus para com a humanidade, assim, referenciado pelo neoplatonismo-agostiniano, o ágape será o Amor Ideal, o amor perfeito, o amor doação. O ágape será o amor incorruptível, imutável, verdadeiro, com que Deus se dirige aos homens e mulheres, ainda mais, à toda criação. Dirão que Deus criou o mundo porque amou e o amor terá sido o movimento criador de Deus. Em termos neoplatônicos, Deus irradia-se a si mesmo como amor e este sendo a causa da existência das coisas criadas. Deus é ágape e segundo o seu Ser ele cria.

A contraparte do ágape estaria no éros. Esta forma de amor estaria ligada à carne, à matéria, ao corruptível, imutável, inconstante, ao que é e deixa de ser, às paixões e aos sentidos. Éros é tomado como o jogo da sedução, do engano, até mesmo do diabólico. Quando distanciando, contudo, absorvendo o gnosticismo e o maniqueísmo, assim como buscando se diferenciar do paganismo, o cristianismo hegemônico dirá que o éros é o amor no prazer sexual. Assim como o amor espiritual será o ágape, o amor carnal será o éros. Desta maneira a dualidade entre o mundo inteligível e o mundo sensível, entre o imóvel e o móvel, entre o Ser e o não-Ser, entre espírito e carne é posta também a operar quando falamos de amor. De um lado o ágape e de outro o éros. O ágape como o amor de Deus pela humanidade e o amor daquele que crê e se deixa transpassar pelo amor de Deus, vindo a amar a humanidade. 

Agostinho dirá: ama e faze tudo o que queres, isto é, ágape e faze o que o desejo de Deus em você o levar a fazer. Amar/ágape é ser absorvido pelo amor de Deus e nesta absorção amar como Deus ama e amar o que Deus ama. O ágape é uma forma de comtemplação teórica que será radicalizada pelos místicos medievais. Qie se contraporá ao éros, como o amor sensual, material, o amor que hoje se tem e amanhã já deixou de se ter. Dito isto devemos perceber duas coisas: primeiramente que a philia, que traduzimos por amizade, foi, como que um terceiro excluído, sendo escamoteada, obliterada, deixada de ser referencia para as relações entre os humanos; segundo, que esta conceituação bivalente e opositiva entre ágape e éros que falamos acima foi uma construção tardia do cristianismo. A dualidade ágape/éros estará em conformidade à dualidade espírito/corpo, inteligível/sensível.

Tomemos então outras referências para buscarmos outra perspectiva de compreensão do amor. Para nossa releitura é importante salientar que o éros e o ágape não tinham este sentido opositivo e excludente, antes, integravam com a philia um conjunto de dizeres sobre as relações entre pessoas e deuses. Inicialmente tomemos o éros. Podemos dizer, que esta expressão do amor nos fala sobre o fazer-se amável, a disposição de uma pessoa para que seja amada por outra. É um ir em direção ao outro a fim de fazer com que este outro ame aquele que se aproxima. Fazer-se amável não é o mesmo que seduzir, mas, digamos aproximadamente que é ser simpático, agradável, acessível.
Ágape assume o sentido oposto de éros quando se pensa no movimento que ele procura descrever. Mas, não é excludente, antes, complementar. Ágape nos fala em amar o outro sem a expectativa da retribuição, da aceitação. Ágape é ir em direção ao outro sem que, necessariamente, o outro me ame/éros. É buscar a aproximação não para ser amado, mas porque ama. Haveria certa incondicionalidade. Éros e ágape, como podemos ver, não se excluem, mas podem vir a se complementar. Alguém pode ir ao encontro de outra pessoa por ágape e concomitantemente, neste ir, ir eroticamente, isto é, buscando ser amável, ser amado.

Dito isto podemos tomar a terceira expressão do amor que os gregos chamavam de philia. Enquanto éros e ágape nos apontam para diferenças, philia nos fala de identificação. Em outras palavras, ágape implica no amor que uma pessoa tem por outra, mesmo que esta segunda não o corresponda, havendo, assim, uma diferença entre o amor da primeira e da segunda pessoa. No éros igualmente há uma diferença de amor, pois posso não amar alguém, mas fazer-me amável a fim de ser amado determinando uma intenção de diferenciação entre o eu e o tu. Contudo a philia é um tipo de amor que se coloca quando há reciprocidade e identidade de “sentimentos”. 

Aristóteles, Cícero e Montesquieu (filósofo moderno) escreveram textos memoráveis sobre a philia e em seus escritos podemos ver o eco da seguinte proposição: “os amigos são dois corpos e uma mesma alma”, são dois corpos distintos, mas com identidade, isto é, uma mesma alma. Agostinho em suas Confissões toma este conceito de philia grego-romana para descrever o movimento da alma desde o distanciamento de Deus até a identificação com ele, como amizade, philia.

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, ou Ética Nicomaquéia – e nos parece que é este texto que será relido por Cícero e Montesquieu – nos dirá que há tipos diferentes entre relacionamentos, mas que somente um destes “sentimentos” poderá ser chamado de philia. Um homem e uma mulher se relacionam para procriar, portanto, sendo motivados por um interesse não podem nutrir a amizade. Um pai e um filho se relacionam hierarquicamente, pois o primeiro deve usar de autoridade e de mestria sobre o segundo, portanto não podem ter philia. Irmãos não são amigos por natureza, ou, o fato de duas pessoas serem irmãos não os torna amigos, pois a amizade não é imposta, antes, é um movimento da alma. Pessoas que estabelecem relações comerciais, quando há trocas mercantis ou diferenças de riquezas, não podem ser amigos, pelo mesmo móvito que um homem e uma mulher não o podem, pois há interesses envolvidos. Um servo e um senhor também não são amigos porque há diferenças sociais envolvidas, hierarquias sociais. Não há amizade entre pessoas com “virtudes” desiguais, ou, com excelências, diríamos hoje, com capital social, ou, cultura distintas.

Em linhas gerais, a amizade se dá entre dois homens com condições econômicas e culturais similares e que se escolhem desinteressadamente e mutuamente. Cada um destes dois homens encontrarão no amigo uma identidade de alma. Terão prazer um na presença de outro, sem que nada peçam e nada ofereçam. Não haverá diferenças hierárquicas, culturais, econômicas e sexuais, podendo assim, nutrir a amizade entre eles. A amizade, desta maneira, não é uma forma de relacionamento que todos os homens podem estabelecer com todos os homens, mas alguns homens dentre os aristocratas e os oligarcas da Cidade podem cultivar mutuamente. Qual a importância, então, da philia para que Aristóteles dedicasse um texto longo sobre o tema?

Aristóteles está, dentro do movimento iniciado por Platão, a Filosofia, procurando uma racionalidade diferente. Dissemos anteriormente que enquanto Platão entendia que a Razão era contemplativa, isto é, um olhar para o Mundo das Idéias, Aristóteles buscava a racionalidade inscrita no mundo sensível. Platão está preocupado com o éros, em se fazer amável e desta maneira obter a Teoria. Aristóteles está preocupado com que se apresenta aos sentidos e por meio deste buscar a razão das e para as coisas. Enquanto Platão faz uso constante de mitologias para apoiar seus discursos, Aristóteles busca exemplos na natureza.

Platão para descrever o porque dos homens viverem em Cidades, propõe um mito da “criação”. Segundo este, quando os deuses criaram os animais, a cada um conferiram uma competência/habilidade que os permitia sobreviver entre eles, uns contra os outros. A uns a força, outros a velocidade, outros a furtividade, etc., mas nada coube aos homens. Aos homens veio a caber, a fim de não serem mortos pelos demais animais, viver em Cidades e para tanto precisavam de habilidades para convivência, como a justiça. Menos nos importa aqui o mito e sua precisão, e mais nos importa que esta mitologia platônica nos diz que os homens passaram a viver em Cidades a fim de suprir carências. É a carência de habilidades individuais e certo medo que levou o homem a se unir a outro homem numa Cidade, a qual deve buscar a justiça. Para que a justiça seja possível a Cidade deve ser ordenada a partir de uma monarquia, isto é, o poder do um. O monarca platônico é o filósofo-rei, que contemplando o Mundo das Ideias, isto é, a Ideia do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro, ordena hierarquicamente todas as funções e articulações na Cidade. Assim, temos o mito platônico para a Cidade integrado com a Política: os deuses, a política e a mitologia. Platão não precisa da amizade para ordenar o cosmos político, pelo menos não no sentido que estamos adotando.

Aristóteles toma outro viés. Este nos diz que a Cidade não é resultado de carência e medo, mas que a Cidade visa o bem-estar. Segundo a Política de Aristóteles, um “oikos” (uma casa, que tinha no pater família, no despotes, no poder paterno o centro do poder, organizada hierarquicamente a partir dai pela mulher, o filho, o escravo e o animal) se junta a outro “oikos”, para o aumento do bem-estar. Na proposição de Aristóteles não há deuses e criação, mas “oikos” cuja ordem privada é mantida, mas para que se aumente o bem-estar de cada um, se juntam numa vida pública. O público e o privado estão integrados para que o bem-estar seja ampliado. No espaço público, então, os homens deverão buscar forma de vida comum. Tendo em vista esta intensão de viverem juntos e com incremento de bem-estar, buscam constituir a Cidade, isto é, estabelecer ordem legal e institucional. Mas a questão é: porque juntam estes “oikos” àqueles “oikos” e deixam outros fora do arranjo?

Aqui entra a philia como amarração da Cidade. Os despotes/pater família, os melhores e mais ricos se juntam sem um interesse prévio, mas desinteressadamente. Um “oikos” se junta a outro “oikos” porque estes aristocratas e oligarcas se identificam uns com os outros e visando o bem-estar comum constituem uma Cidade. Não há aqui o interesse mercantil, hierárquico e nem mesmo as determinações familiares e de reprodução, mas a identificação entre os despotes/pater família. O poder na Cidade deve ser exercido por todos os cidadãos, em revezamento de cargos e funções entre eles e por meio de sorteio.

Mas ali onde se dá a constituição da Cidade por meio da amizade, se instaura também a diferença, a hierarquização social, a inimizade. Enquanto a amizade é identidade não motivada por interesses econômicos e raciais (isto é, entre senhor e servo), a inimizade pode ser pensado como as relações estabelecidas entre indivíduos desiguais economicamente e racialmente. A Cidade de Aristóteles é fendida não apenas entre o privado e o público, em que o privado é ordenado pelo governo despótico do pater família e hierarquizado a partir deste. A Cidade é fendida no espaço público entre os amigos e os não amigos: de um lado os gregos aristocratas e oligarcas, e de outro os gregos do povo, os gregos de outras cidades, os escravos.

Precisamos entender que tanto o mito platônico para a Cidade, como o mito aristotélico podem ser entendido menos como descrições histórico-científico como entendemos hoje com o termo, e mais discursos com caráter prescritivo. Ao escolher o mito da criação, Platão articula medo, carência, justiça e a monarquia do filósofo-rei. Ao escolher o bem-estar, a filia, a constituição da Cidade pela divisão e revezamento de poder pelos aristocratas e oligarcas, Aristóteles privilegia outra ordem política. Enquanto a ordem politica de Aristóteles requer a amizade, a ordem política de Platão deixa-a de lado. Cícero retomará o tema da amizade no texto hoje conhecido por nós como “Da Amizade”, que menos apresenta elementos novos e mais rearticula-a em Roma. Agostinho, como dissemos, articula a amizade no encaminhamento da alma em seu retorno a Deus, despolitizando-a. A Idade Média verá a Cidade dos Homens reduzir sua importância como meio de justiça e salvação, isto é, como meio de fazer retornar a alma a Deus. Por outro lado, a hegemonia do pensamento neoplatônico no Ocidente será o mote. Desta maneira a amizade será um tema pouco visitado. Montesquieu retomará o tema, propondo uma releitura de Aristóteles e Cícero, como certa crítica ao mundo cristão em eclipsamento. Mas tanto será tarde para se pensar numa amizade, como ela retomará apenas como identidade entre aristocratas e oligarcas.

Tomás de Aquino, ainda que pense a amizade, privilegiará o éros, como um movimento humano de se fazer agradável a Deus. Sem abandonar o ágape cristão que por quase mil e trezentos anos imperou absoluto diante do esvaecimento da philia e a demonização do éros, Aquino retoma corajosamente esta última forma de amor. Ao homem, assim, caberia também o esforço por ser amado por Deus, não no sentido de levar Deus a amá-lo, mas de ser receptivo ao ágape e retribuir em éros. Aquino reintegra, sem descarte, estes três amores na chave neoplatônica-cristã do Um. Contudo, o individualismo e a prevalência da quantificação e valoração da vida promoverão um abandono da temática do amor, nestes termos apresentados.


PARTE V do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.