sábado, outubro 12, 2013

SER E PALAVRA


O “Ser”, embora para o pensamento discursivo não seja um atributo, é a expressão de uma pura relação e, para a consciência religiosa, o mais elevado atributo possível, um resumo, enfim, de todos os outros atributos particulares, sendo referido como própria “Palavra”. Estabelece-se então aquela equação na qual “Ser” e “Palavra” são identificados:

Só uma designação pode caber a este Deus, junto à que o qualifica como Criador do mundo, formador de homens e deuses: a do Ser simplesmente. Ele engendra e não é engendrado, pare e não é parido, ele mesmo é o Ser, o Constante em tudo, o Permanente em tudo. Por isso, Ele “é desde o princípio”, “é desde a origem” e tudo o que é, chegou a ser depois que Ele foi. Todos os nomes divinos isolados, concretos e individuais, foram aqui fundidos no único nome do Ser; o divino exclui todo o atributo particular, não pode mais ser descrito por nenhuma coisa e só pode ser predicado por si mesmo. (CASSIRER, 1985)

Não obstante, outros dois desenvolvimentos acontecerão a par desta nova configuração da divindade, agora num patamar místico. Quando o sentido do divino se abre ao ser da Pessoa, para além do da coisa, o pronome pessoal agrega-se ao “Ser”, daí derivando o “Eu Sou”. Estamos aqui diante do monoteísmo puro, no qual vai entroncar-se a tradição judaico cristã. Para Cassirer, explicando a importância deste passo na evolução da consciência religiosa:

“Só por meio desta transformação da existência objetiva no ser pessoal se eleva verdadeiramente o divino à esfera do “incondicionado”, a um domínio que não pode ser designado por nenhuma analogia com uma coisa ou nome de coisa. De todos os meios da linguagem, só restaram as expressões pessoais, os pronomes pessoais, para a Sua designação: “Eu sou Ele”; “Eu sou o Primeiro e o Último”, conforme está escrito nos livros proféticos.” (CASSIRER, 1985)

O segundo desenvolvimento referido dá-se através da junção mais íntima das vias de contemplação religiosa centradas na dimensão do “Ser”, abstração das coisas em particular que encerra em si o que é comum a todas as coisas, e na dimensão do “Eu”, abstração das pessoas em concreto que engloba o que é comum à existência de todas as pessoas. Recorrendo aos termos da tradição hindu, Cassirer sublinha a ocorrência de uma identificação entre “Ser” e “Eu”, Brahman e Atman, objeto e sujeito, resultando daqui um “Eu-mesmo”. No entanto, porque agora a linguagem já não é capaz, como em anteriores etapas, de abranger a unidade entre sujeito e objeto, a consciência religiosa vai libertar-se do poder da palavra e da linguagem, abrindo-se mais marcadamente à esfera do transcendente, do impossível de alcançar pela palavra e pelo conceito. Neste ponto surge a teologia negativa, caracterizada por um procedimento apofático que remete sempre para um “mais além” que, embora enraizado no imanente, é inalcançável pela palavra humana: “The more God is in all things, the more he is outside them. The more He is within, the more without.” (M. ECKHART, cit. in HUXLEY, 2004).

Cassirer, relativamente ao seu estudo deste desenvolvimento da consciência mítico-religiosa a par do desenvolvimento da apreensão linguística, vai afirmar:

“Há, pois, no âmbito da percepção mítico-religiosa um “inefável” de diferentes ordens, um deles marca o limite inferior da expressão verbal, enquanto o outro representa o limite superior; entre ambos os confins, traçados pela própria natureza da expressão verbal, a linguagem pode agora mover-se livremente, exibir toda a riqueza e profusão concreta de seu poder de configuração.” (CASSIRER, 1985)

A palavra, nascendo, permitirá que o mundo externo se torne apreensível para a consciência humana. O ato da denominação gera a ordem, o cosmos, resgatando o ser humano do caos. Já num estrato superior, a linguagem dá-se conta dos seus limites, percebendo, por via do desenvolvimento da consciência lógica a par da consciência mítico-religiosa, a impossibilidade de comunicação da unidade entre sujeito e objeto intuída pela segunda. A comunicação da percepção de tal unidade, no limite, nunca será viável, pois o domínio dessa comunicação não poderá ser outro que o da consciência mítico-religiosa, mas a linguagem, não obstante, apontará, como que vigiando e dando em si mesma, lugar ao que não pode ser dito, para a esfera transcendente e sobre-humana na qual se conservará a validade dessa percepção. No entanto, os grandes místicos continuarão a afirmar a viabilidade de uma certa experiência dessa não-dualidade, apesar da inexequibilidade da sua recolha no seio das palavras.

Bibliografia

Cassirer, Ernest. Linguagem, Mito e Religião. Trad. Rui Reininho. Porto: Rés, 1976.