sexta-feira, novembro 20, 2015

NATUREZA




O que é a Natureza, afinal?

Antes de mais nada, como nos conta Heidegger, voltar-se à questão na forma de “o que é...?”, é buscar a essência daquilo que se pergunta. Este filósofo alemão nos dirá que foi Sócrates que colocou de maneira definitiva tal pergunta, ao formá-la na maneira grega: “Ti estin...?” (“O que é a metafísica”, Os Pensadores)

Quando dizemos “ti estin physis?” (o que é a natureza?) estaríamos perguntando sobre a essência de uma coisa que chamamos de “Natureza”. Mas, como nos dirá o mesmo Heidegger, a “Natureza”, ou “Natura” não se fala em grego, mas no latim, pois o grego diz “physis” , que é outra coisa que não a natureza. Em seu texto sobre a obra de arte dirá que na passagem do grego para o latim perdeu-se muito, isto é, na tradução abandonou-se o conceito original em prol de outro.


A physis grega era tudo o que há, o mundo, o existente. Tudo o que existe, é num cosmos fechado e finito que os gregos chamavam de physis. Assim, os deuses, os homens, os animais e vegetais, as matérias inertes, os quatro elementos, a matéria-prima, o Motor Imóvel, tudo está na physis. Até mesmo o tempo.


No cristianismo, herdeiro dos judeus, os deuses, mais propriamente Deus, não está na physis, mas é transcendente a ela, é o criador da Natureza. Não apenas da Natureza, mas dos céus (o não natural) e a terra (o natural). Neste momento a physis se torna natura, enquanto Deus transcende ao criado. 


O projeto monista de Spinoza trata de fazer coincidir Deus e Natureza, em sua velha fórmula: “Deus sive natura”, o que poderia ser dito como: “Deus, isto é, Natureza”. Mas a natureza de Spinoza já não é a physis dos gregos, certamente, pois não é habitada por deuses e daimonion.


Voltemos um pouco aos gregos. A physis é o que é, incriada e eterna, o cosmos de tudo o que há, como dissemos. O mundo das Ideias, de Platão, estava longe de ser uma dimensão transcendente radical, como o Deus dos cristãos. A transcendência do Mundo das Ideias de Platão se dá na imanência da physis. Isto quer dizer que transcende o mundo corruptível, mutável e temporal, projetando-se como um mundo do imutável, incorruptível, atemporal, contudo existente na physis. É o trabalho de paganização do cristianismo que faz o sincretismo entre o Mundo das Ideias de Platão e o Logos de João e Paulo. É a patrísitca dos séculos II ao VI que faz a mistura entre o Logos e o Nuos, a Inteligêngia que pensa o Mundo das Ideias e os seres, permitindo a passagem entre o Pai (o além do Ser) e a Criação (céu e terra).


Para os gregos, conhecer é deixar que nosso intelecto se conforme, tome a forma, identifique-se com as ideias. Tanto para Platão, quanto para Aristóteles, o mundo das coisas, o existente traz nele as formas, as ideias (eidos). Conhecer é uma ação de dar forma ao intelecto, identificando-o com as formas existentes. 


O cristianismo não alterou em muito este movimento. As formas, as ideias estão no mundo e devemos dar forma ao intelecto a fim de que se identifique com o mundo. A diferença mais marcante entre os gregos e os cristãos não está no processo de conhecimento, mas na teleologia, no propósito. Os neoplatônicos (herdeiros de Platão e, de certa maneira, de Aristóteles), associavam o conhecimento à salvação (soteros). Para eles (que não viram as bombas atômicas, os crimes ecológicos, o marxismo-stalinista e o facismo-nazismo) o conhecimento conduz a alma em retorno a Deus. A metáfora que usam é a de um corpo sujo que ao se lavar em águas límpidas, pode se tornar limpo, isto é, retornar à sua condição inicial. Alguns grupos gnósticos-cristão procuram fazer um sincretismo com os neoplatônicos. Outra metáfora que usaram é a de Deus como Sol. Os cristãos perceberam que ao nos aproximarmos do fogo, o que em primeiro momento pode se dar com salvação, num segundo se dará como queimadura e incineração.


A mudança epistemológica que o cristianismo introduziu foi a fé. Para os cristãos (agora nos aproximamos de Agostinho), a salvação articula-se com o conhecimento, mas o conhecimento verdadeiro (aquele que conduz o homem a Deus, sem causar queimaduras, ou transformá-lo em pó) é antecedido pela fé. Qual fé? Em Cristo como o Deus-homem. A fé permitiria um conhecimento tal que o homem retornaria a Deus sem o terror de sua presença aniquiladora. Contudo, o conhecimento possível é o conhecimento sobre o mundo como identidade entre as formas dadas e o intelecto. Tomás de Aquino, mais de oitocentos anos depois de Agostinho, oferece as provas da existência de Deus apenas olhando para o mundo. Devemos notar que Aquino não oferece uma prova da existência do Deus Pai, mas do Deus-Logos, aquele que transcendendo à Natureza Criada, ainda é imanente a ela enquanto Homem-Deus. O Deus Pai, o além do Ser apenas é acessível pro um salto no escuro (aqui nos permitimos uma apropriação diacrônica, tomando um conceito de Kierkegaard, mas algo que ressoa mais próximo de Agostinho, quando se diz: “creio por ser absurdo”), um conhecimento analógico permitido pela fé. 


Uma vez que os cristão se valem, ou, são tributários da cosmologia grega, transformando-a de Physis para Natura, contudo entendem-na como o existente que transcende a corrupção, a mudança, na qual podemos conhecer as formas, as ideias. A Physis e a Natureza, para além da matéria, tem uma forma que não se corrompe. Mas com a passagem para a Modernidade, tomando as heranças do sujeito do conhecimento plantado por Aquino, o Ocidente promoveu uma mudança. Não mais a Natureza haveria de nos oferecer as formas e o intelecto haveria tomar estas formas em si, mas o sujeito do conhecimento haveria de dizer coisas sobre o mundo, sobre a Natureza. O sujeito do conhecimento haveria de produzir, agir em prol de um conhecimento claro e distinto sobre o mundo. Não é a Natureza que fala ao homem, mas o sujeito que fala sobre a Natureza.


Contudo, a Natureza continua sendo aquele reserva de verdade, se segurança, de imutabilidade. Galileu nos dirá que o Cosmos é um livro aberto cuja linguagem é a matemática, está nos dizendo que leis imutáveis no Universo, tanto quanto podemos dizer que 2=2. Newton trabalhará, por sua vez, com o propósito de encontrar na Natureza as Leis cósmicas, isto é, as Leis que algum relojoeiro ali determinou. A Natureza tem um Legislador, que, tal qual este, aquela é regida por lei fixas, constante, contínuas. Assim Newton descobre a Lei da Gravitação Universal: uma Lei, imutável no tempo e no espaço, que rege o movimento dos corpos a despeito de quais sejam eles.


 John Locke vai propor uma Natureza Humana a partir destas crenças na imutabilidade de leis intrínsecas e imutáveis. A Natureza Humana está imbricada, ou dada pela racionalidade, certa racionalidade. Mais tarde Adam Smith vai aproximar Locke e Hobbes e trabalhar a Natureza Humana como racionalidade e auto-interesse. O fato é que o liberalismo de Locke e Smith são tributários à Lei determinada por um relojoeiro, esta natureza é imutável, incorruptível, existente a despeito do espaço e do tempo: todos os homens, em todos os lugares e em todos os tempos trarão em si esta natureza.


Kant muda um pouco esta ideia, fendendo os homens em abstrato e concretos. O homem concreto é cada um de nós, com suas vidas limitadas no tempo e no espaço, sujeitos à corrupção, mutações, e voltados para as circunstâncias. O homem abstrato é o resultado do encontro entre o homem concreto e os universais, isto é, aquilo que nos faz aproximar da verdade. O homem abstrato transcende o homem concreto, pois não está preso ao tempo e ao espaço. Aqueles valores, por exemplo morais, que são universalizáveis, que podem e devem servir de conduta moral a qualquer um, a despeito da cultura, da história, da sociedade, etc., este é um valor transcendente do homem abstrato. Kant opera tendo como ponto de fuga, lugar de segurança uma metafísica que se funda na verdade, não passível de ser reconhecida, mas lugar para onde nos movemos. Haveria uma certa natureza humana transcendente que nos permite nos mover para lá por meio de proposições universais. 


O mesmo artifício epistemológico de Newton está em ação aqui em Locke, Smith e Kant: Há um relojoeiro criador que determinou a possibilidade de leis universais e cabe ao homem, seguindo estas leis que estão em si e que lhe confere uma Natureza Humana, descobri-las. Neste ponto precisamos lembrar da Escolástica. Para eles havia quatro níveis de leis: a Lei em Deus (que rege misteriosamente sua conduta), a Lei Revelada (nas Escrituras), a Lei da Natureza (determinada pelo Logos, imutável) e a lei dos homens. Uma lei humana justa é aquela que se funda e se volta à Lei da Natureza, esta por sua vez, se funda e se volta para o Logos, que contempla a Deus. Locke, Smith, Hobbes, Kant, todos estavam em busca de uma lei humana que se fundasse e que contemplasse a Lei da Natureza. Não há justiça maior do que um homem que age conforme a Lei da Natureza que vê inscrita em si. A lei da liberdade é a Natureza do Homem, no caso de Kant, do homem abstrato.


Contudo, o movimento epistemológico promovido pela Modernidade já trazia consigo a questão, a tortura da metafísica. Darwin, quando escreve “A origem das espécies”, promove duas mudanças: primeiro, a Natureza deixa de ser imutável, um lugar seguro, um ponto de apoio; mas, as Leis da Natureza estão inscritas nos corpos. O que isto quer dizer? Que as ideias que dão formas aos entes, às coisa no mundo não são imutáveis como queria Platão, mas são mutáveis. Aquilo que um dia foi uma gosma no oceano, pode se tornar um elefante, passados alguns milênios, e um elefante daqui alguns milênios se tornará uma animal (caso não seja extinto por nós antes) completamente diferente. O mesmo se aplica ao humano, que passou a ser um animal entre animais. Contudo a Lei que promove estas mudança continua imutável. O darwinismo ainda é uma metafísica que não se livrou da Lei da Natureza, pois a Lei agora é a adaptação das formas às contingências. Há leis na Natureza que promovem adaptações. Embora Darwin tenha feito uma ferida mortal na cosmologia de Platão e Aristóteles, ele não se livrou do Relojoeiro, antes, exige sua presença.


O que Darwin, de fato, nos permite pensar é que a natureza deixa de ser a Natureza. Assim, a partir de Darwin, podemos perguntar novamente: O que é a Natureza, afinal? Se buscamos uma resposta sobre a essência da Natureza, aquilo que faz da Natureza algo não sujeito às mutações, às corrupções, então devemos responder: Não há a Natureza! É a partir do esfacelamento do mito da Natureza como o porto seguro, na qual há Leis que asseguram sua incorruptibilidade e imutabilidade, como um espelho analógico de Deus, que alguns correram para dizer: “Deus está morto!” (Heiner e Nietzsche, por exemplo). Se Deus sive Natura e não há a Natureza, então este monismo morreu, e já vai tarde. Mais do que esta corrida armamentista contra Deus, Foucault percebeu, muito bem, que se a Natureza não é essencial, não existe como conceito possível, então a Natureza Humana é uma quimera, um mito, uma falácia. Desta maneira, não é Deus quem morreu, mas a Natureza Humana, que morreu. O homem, abstrato, foi desnaturalizado, desessencializado. 


A guilhotina de Robespierre, os campos de extermínio nazistas, os gulags marxistas-stalinistas, os pelotões de fuzilamento marxista-maoista, as ditaduras militares, Hiroshima e Nagasaki, as barreiras de Mariana, a violência urbana, as desigualdades sociais, etc., atestariam a morte da humanidade. O niilismo nietzschiniano não estaria abrindo, em quaisquer uma de suas possibilidades, ao darwinismo social e das hierarquias sociais ordenadas pela Lei do mais forte, apto?


 A questão que poderíamos pensar, talvez, seria: poderia a humanidade buscar na Lei da Natureza uma referência tal que agindo segundo esta Lei descumpra a Lei Natural e transcenda sua natureza brutal, predatória? Uma Lei que nos permita romper com as fronteiras espaço-temporais, mesmo que seja transitoriamente, e que nos faça voltar a qualquer um como o elemento vital da existência de todos? Uma Lei da Solidariedade e da Hospitalidade que tanto seja Natural, enquanto perceba que todos estamos e somos Natureza, indistintamente, mas que rompa com uma pretensa Natureza predatória? Uma Lei que achemos inscrita, sem que saibamos por meio de qual decreto, em algum canto de nosso mundo. Uma Lei que nos permitisse o encontro com nossa humanidade, enquanto finitude e limitações, inacabamento e incompletude, mutação e adaptação, mas que nos tornasse divinos, acolhesse em nós a divindade daquele que amando não levou em conta a si mesmo, mas se moveu em favor do outro. Uma Lei na natureza sem a Natureza da Lei.



Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

quarta-feira, junho 10, 2015

PENTEANDO PORCO ESPINHO




Em certo momento dos evangelhos podemos ler claramente: “quem quiser vir após mim, tome a sua cruz e siga-me.” Estas palavra são atribuídas a Jesus, que os cristãos creem ser o Cristo. A tradição cristã, a partir de um dado momento, procurou homogeneizar certa interpretação para o calvário e a cruz de Jesus, ou se preferirem, de Cristo. Mas a cruz há de nos fazer retornar ao Éden, quando o casal primordial, chamado posteriormente de Adão e Eva, tomou do fruto que Deus havia proibido de comer e o comeram. Embora estas palavras não estejam no referido texto, os cristãos passaram a chamar aquele ato de “pecado original”, ou, o ato de desobediência humana que culminou na expulsão do Jardim de Éden. A humanidade, então, carregou uma dívida impagável que exigia resgate, pagamento. Assim, aquele que instituiu a dívida, Deus, envia aquele que há de pagá-la: o Filho de Deus. A cruz seria o momento em que o Filho de Deus se oferece em sacrifício a Deus em prol da humanidade, pagando, assim, a dívida que estava inscrita desde o Éden. A relação crime-castigo teria sido quebrada pelo sacrifício, este que abre as portas dos céus aos humanos, permitindo-lhes retornar a Deus. A alma do humano tem, por meio da fé em Jesus o Cristo sacrificado por nós, a porta aberta que permite trilhar o caminho até Deus.

A questão do pecado, introduzida na interpretação do Gênesis, é importante. No grego a palavra “pecado” é “amarthia”, isto é, “errar o alvo”. A metáfora implícita é a de um arqueiro que mira o alvo e falha em sua tentativa. O humano ao dar ouvidos à serpente passou a desejar ser igual a Deus, assim, teria errado o alvo, tornando-se assenhorado pelo pecado. Jesus teria dito, ademais, que somos servos de quem servimos. O humano tornou-se escravo do pecado, isto é, assenhorado pela serpente. O sacrifício da cruz seria o preço que Deus teria que pagar pelo resgate do humano. A cruz tornou-se o símbolo do resgate, do preço da liberdade humana, que o permite retornar a Deus, isto é, que ao crer pode trilhar o caminho de retorno a Deus. Jesus teria pago o preço, de uma vez por todas, mas o enganador de nossas almas permanece solto ao nosso derredor, rugindo como um leão, a fim de nos tragar novamente para a morte. Neste ponto a obediência, que é a contraparte do pecado, retorna como exigência moral. Haveria um conjunto de leis morais, ideais, que devemos nos submeter em obediência, a fim de nos afastarmos do perigo do pecado. Entre estes ideais estaria a família tradicional, composta por um homem, uma mulher e a prole. O sexo se daria no âmbito da heteroxesualidade e da monogamia.

Qualquer desvio deste alvo de idealidades implica em errar o alvo, isto é, pecar. Haveria um conjunto de normas morais que regem a vida do cristão, regras estas reveladas por Deus à humanidade, que a não observância, isto é, a desobediência significa rebeldia, tal qual aquela que Lúcifer teria realizado quando desejou ocupar uma posição similar a Deus, nos céus. Aquelas questões norteadores e normatizadoras das relações na família, na sexualidade, na obediência às leis pátrias, no trabalho, na submissão às hierarquias eclesiásticas, normas sobre o uso da linguagem (verdade/mentira, palavras chulas, seduções, sedições, etc.), normas sobre as vestimentas, sobre as condutas sociais, etc., tudo isto é idealizado, correspondendo ao pecado quando não as levamos em conta ou não nos identificamos com elas. Na cruz Jesus, ou Cristo, teria pago o preço da desobediência humana, no entanto, agora o indivíduo deve mostrar em seus atos a fé que diz ter. A moral cristã se torna não apenas rígida, como tradicional, isto é, tem seus arquétipos em modelos ideias que foram fixados no passado. Na cruz foi pago o preço do desvio, mas a partir da fé devemos conhecer o modelo revelado por Deus para o humano ideal e nos submeter a este modelo, enquanto Satanás e seus anjos buscam nos fazer desviar os olhos destes padrões divinos de valores e comportamentos morais.

O humano de fé se volta para a cruz e crê na possibilidade de se livrar das imposições da carne, dos apetites da imoralidade e se volta ao conhecimento dos modelos e padrões divinos que o permite viver com outros humanos, aqueles que compartilham da mesma fé, e aqueles que não compartilham. O padrão elevado da moral cristã coloca o crente numa posição superior de civilidade, de respeito às leis e às normas da cidade, da política. O cristão dos primeiros séculos foi reconhecido por sua conduta moral, cívica de obediência às leis, de ser pacífico e de contribuir com o bem comum. Os protestantes dos séculos XVI em diante, foram trabalhadores fervorosos que buscavam glorificar a Deus por meio de seu esforço e enriquecimento, além de uma moral ilibada. A cruz destes cristãos seria o dar as costas aos apetites carnais, daquilo que é passageiro, mutável, corruptível, voltando-se para o eterno, o imutável, o incorruptível, etc. Sacrificavam, assim, seus corpos a fim de obter um prêmio de excelência maior na eternidade.

Mas o que, de fato, se torna eterno é o pecado, a culpa e o sacrifício. Como as exigências morais são ainda mais elevadas e as regras ainda mais rígidas, as chances, as possibilidades, a efetividade de um humano em cumprí-las, em realizá-las é inexistente, é impossível. Sempre o humano estaria retornando ao Éden e retomando o fruto proibido e comendo-o, sendo expulso dali infinitas vezes. O cristianismo se torna trágico, pois o sacrifício não cessa, antes, se reproduz como numa linha de produção. Jesus, ou Cristo, retorna incessantemente para a via crucis, carrega a cruz, é violentado, pendurado, desnudado, escarnecido, abandonado e morto bilhões e bilhões de vezes. A alternativa é que o sacrifício de Jesus, ou Cristo, tenha pago os pecados do passado e do futuro, segundo a potencia eterna do sacrifício vicário. Mas, então, temos um problema com a obediência, pois na superabundância sacrificial a obediência pode ser abandonada em nome da graça.

Outro problema do esquema pecado original e dívida satânica é que Deus decretou esta norma, mas Deus, a despeito de seu poder único e inigualável, não decretou o fim da dívida. Em outras palavras, por que Deus, no lugar de exigir sacrifício, não, simplesmente, disse: estão perdoados os pecados? Explicando melhor. Deus, no Éden, disse ao humano que se ele comesse do fruto do conhecimento do bem e do mal, ele (o humano) morreria. O casal, não obstante esta recomendação, tomou do fruto e comeu, assim dizem os cristãos, e pecaram. Por que será que Deus não se voltou para o casal e, imediatamente, lhes disse: “eu vos perdoo”? Não! Muito pelo contrário, exigiu que seu filho se tornasse um sacrifício para pagamento de uma dívida que os humanos tinham com o próprio Deus. Deus paga sua própria dívida?! Imaginemos que José deva a Manuel um valor impagável. Depois de várias tentativas frustradas, Manuel diz a José: Ok, você não vai me pagar, então, eu mesmo me pagarei. Tira um talão de cheques do bolso, preenche com o valor da dívida, assina-o, e dá o cheque preenchido e assinado a si mesmo. E diz a José: agora você me deve obediência. A narrativa do pecado-dívida-sacrifício pode ser simplificada nesta anedota.

A questão central está, nesta narrativa, na dívida impagável criada pelo soberano e a obediência daqueles que são colocados diante de exigências sobre-humanas. Exigências morais que são da ordem do íntimo, do privado e do social, mas também são da ordem do público e do político, pois tanto devemos nos identificar com os padrões e valores comportamentais e sociais, como temos o dever de obedecer às autoridades como que instituídas por Deus. Quaisquer atos contrários ao Estado, às leis, à moral pública e privada, assim como desejos íntimos e secretos são tomados como desvios do alvo, portanto, pecaminosos, passíveis de punição. O sacrifício de Jesus, ou Cristo, na cruz nos lembra aquelas palavras dele mesmo: “vocês, fariseus, se esforçam para fazer um prosélito, quando conseguem impõem a ele uma carga ainda mais pesada do que aquela que tinha antes.”

Temos que imaginar, sem temor, que a narrativa da cruz tenha outro sentido. Imaginemos, por mais absurdo que possa nos parecer, que a cruz não teve como propósito o pagamento de dívida, pelo contrário, apontou para o fato de que não há dívida alguma a ser paga.

Imaginemos que o pecado original não seja atribuível ao ato de comer o fruto, mas o de estabelecer sacrifícios como forma de aplacar a culpa e as dissimetrias. Em outras palavras, o pecado não é uma rebeldia contra um mandamento, nem um ato profanatório, mas o ato de sacralização. Ao sacrificarmos estabelecemos um corte que separa, que segrega as partes que antes estavam unidas, formando um todo. Agora, temos uma parte destinada ao que é alto e sublime e uma parte que é destinada ao que é baixo e vil. Justificamos o sacrifício no erro a ser corrigido, ou, na busca de aplacarmos as forças que buscam restituição de um erro, de uma perda, de um desvio. Mas, contudo, o erro é a imputação de dívida a quem nada deve e a requisição de um sacrifício a quem não tem culpa. Portanto, o sacrifício é o pecado e como tal produz morte. O sacrifício é o assassinato injusto e ineficaz que legitima a segregação, a assimetria, as imposições. A lei do pecado é a morte, isto é, o sacrifício se impõe como o próprio desvio de uma norma divina, que é a vida.

Se o Gênesis não for a narrativa de uma dívida imputada por Deus aos humanos, mas a introdução de uma simulação de erro que justifica a segregação e as dissimetrias, como fica a cruz de Jesus, ou Cristo? Podemos imaginar Jesus, ou Cristo, diante daquela barbárie que era o sacrifício e percebendo a mentira que está subjacente a este simulacro de ordem tenha pretendido tornar manifesto a mentira sacrificial. O sacrifício é o dispositivo de ordem político-teológico de legitimação da dominação. Mas Jesus Cristo, disse: “entre vós não será assim, pois o maior entre vós será quem vos servir.” Jesus Cristo se volta contra a dominação do humano pelo humano e percebe no sacrifício o dispositivo de legitimação da dissimetria de poder. Entendamos que o sacrifício é o que garante que o erro seja purgado, pago, portanto, garante a continuidade da ordem social. O sacrifício reinstaura a ordem sócio-política, e mantém o cosmos, que está integrado, imbricado com o político. Sacrificar é reinstaurar ordem e não sacrificar é por fim ao mundo. Jesus Cristo, por sua vez, move-se no sentido de demonstrar que a ordem político-jurídico-social do mundo se funda na mentira, na falácia, na violência, no poder. A mentira do poder é aquela que diz que o sacrifício garante a ordem social, assim, cada um de nós há de se entregar voluntariamente ao bem maior.

Desta maneira, podemos imaginar, Jesus Cristo teria proposto sua morte a fim de demonstrar que o sacrifício é ilegítimo, violento e suporta a grande mentira da Pólis Grego-Romana: a ordem social exige sacrifício dos cidadãos. A morte de Cristo na cruz não instaura ordem, mas amplia a desordem. Os textos subsequentes aos evangelhos procurariam demonstrar que a desordem é crescente na região da Palestina, até que no anos de 70 dC. Jerusalém é arruinada. A morte de um homem justo não produziu a ordem, mas a desordem, o assassinato, a injustiça. Os textos escatológicos, de Mateus, Tessalonissenses, Apocalipse, etc., procuram mostram como a ordem sacrificial não instaura ordem, mas violência, dissimetria, morte, etc. Jesus Cristo não teria morrido para pagar o preço do pecado, mas para demonstrar que o verdadeiro pecado é a mentira do sacrifício. Como diz o profeta Daniel: o Messias fará cessar todo sacrifício. A cruz demonstra que é o sacrifício que deve ser eliminado, com ele a culpa/dívida. Não há dívida alguma a ser paga a Deus, este é o sentido da morte da cruz. Por isso Jesus Cristo teria dito para que cada um pegue a sua cruz e o seguisse, isto é, creia que não há dívida alguma a ser paga e que o sacrifício apenas sustenta uma mentira que garante a violência, a opressão, o poder dissimétrico que exige a morte sacrificial do indivíduo em prol das elites e poderes.

Paulo teria escrito mais tarde: nossa luta não é contra a carne e nem sangue, mas contra os “Arché” (em latim “Imperium”, em português, “o Império”, os poderes expressos pelas elites políticas, culturais, econômicas, religiosas, etc.). Em outro lugar havia escrito: Deus nos transportou do Império (“arché”, “Imperium”) das trevas para o reino (“basileus”) do Filho”. Não é uma questão de se voltar contra a política, mas se voltar contra o fundamento da Política, isto é, o sacrifício daqueles que estão destituídos de poder, daqueles que estão à margem do poder, da periferia do poder. É reestabelecer uma possibilidade de vida comunitária que não se funda nas dissimetrias, nas segregações, nos cortes, nos sacrifícios, mas na igualdade das diferenças. Foi o movimento a partir do século II dC., quando os Patriarcas da Igreja começaram a ler os gregos e os romanos, que tornou a Igreja em um modelo moral rígido que exigia abstinência de certos comportamentos morais. A morte de Jesus Cristo na cruz aponta para o fato de que o poder, as elites, os discursos legitimadores da ordem pela via sacrificial, estão sempre fazendo crer na falácia da dívida primordial do indivíduo para com a coletividade, portanto, é exigido deste indivíduo seu sacrifício em prol da ordem. São, no entanto, os segregados, os periféricos, os despoderados que devem se sacrificar pelo bem de todos. O sacrifício destes periféricos é que garante a ordem. Sacrificam suas liberdades em prol do Arché, do Imperium, do Estado. Jesus cristo, segundo esta imagem que projetamos, teria demonstrado que o sacrifício não funda ordem, mas funda submissão.

Nos últimos duzentos anos a representação sacrificial tem sido demonstrada pela moral pequeno-burguês, ou a moral revolucionária marxista. Ambas exigem o sacrifício do indivíduo periférico em prol da sociedade, quer seja ela dominada pelas elites econômicas, quer seja ela dominada pelas ideologias totalitárias. Nas últimas décadas, enquanto a moral sacrificial do trabalho encontrava seus limites últimas de ordenamento da vida social, uma outra moral comezinha tomava vulto: a sexual. Por conta da revolução industrial-taylorista, das guerras mundiais e da pílula a mulher passa a ocupar espaço na vida do trabalho e na vida pública, esgotando, assim, aquele arranjo da família burguesa em que o pai sai para trabalhar e a mãe cuida da economia doméstica e da educação dos filhos. Esta ruptura faz emergir um problema de sentido para a moral cristã-burguesa, que se volta para estabelecer suas fronteiras de sentido na relação estrutural hetero x homo. A despeito da complexidade do tema, podemos perceber que a religião sacrificial que busca modelos ideias aos quais os indivíduos devem se identificar encontrou na fixidez biológica um substrato “natural” que aponta para o lugar do homem e da mulher. Determinando o modelo de família ideal formada por um homem, uma mulher e seus filhos, a religião sacrificial encontra uma forma a qual os indivíduos devem se identificar e se submeter, amoldando-se a este ideal, sacrificando suas escolhas pessoais.

Entretanto, se é o sacrifício que Jesus Cristo põe fim, então, esta ordem natural deve ser exposta a valores que não emergem espontaneamente dela. O que isto poderia querer dizer? Que não haveria um modelo de família ideal dada pela imagem estética e de papeis sexualmente determinados. Antes, haveria um princípio relacional que deveríamos preconizar, priorizar, valorizar, buscar, que seria aquele encontrado na cruz. O princípio do cruz é o do amor gracioso e não da lei modelar. A lei, a norma, a moral é resultante de um reconhecimento das demandas individuais e dos ajustes coletivos que priorizam o amor gracioso. A morte na cruz é o entendimento que o sacrifício não representa e nem impõe ordem, mas que podemos ordenar a vida a partir do reconhecimento mútuo, tendo como fundamento elegível (por fé) o amor gracioso. O que o amor gracioso deseja não é o modelo ideal de família entendido como papeis sexualmente determinados, mas queremos relacionamentos que reconheçam nossa individualidade e nossa carência de sentido dado na comunidade. Não se tem um projeto de família que exige o sacrifício de nossas individualidades e escolhas, mas um movimento que visa o encontro em uma comunidade que oferece liberdade e fronteiras de sentido.

Hora, a ordem sacrificial impõe modelos e fixa conteúdos, sacralizando monumentos, exigindo que a forma ideal e inalterada seja identificada. Haveria, assim, uma relação estrita entre um acontecimento passado e a imagem espetacular que devemos estabelecer a fim de retomar aquela identidade que podemos perder. No entanto pode deixar escapar o sentido do acontecimento. A cruz, por exemplo, não é sacra naquela representação espetacular que estamos habituados a ver nos cinemas, mas aquele acontecimento crucial encontra sua eternidade na crítica à violência e na abertura do reconhecimento da segregação, do sacrifício que se requer dos marginalizados. A cruz não é sacra quando olhamos para uma tela de cinema, mas quando percebemos o discurso contra a dissimetria instaurada por um poder violento e segregador. A cruz é sacra quando enxergamos no Cristo a imagem de todos aqueles que são sacrificados, inutilmente, injustamente, em prol da ordem pública e tradicional. A sacralidade simbólica da cruz está na crítica ao sacrifício.

Neste sentido aquela imagem de uma mulher seminua pregada a uma cruz, ensanguentada e machucada, tendo escrito sobre sua cabeça não o INRI histórico, mas o GLBT moderno, rompe com a espetacularidade quando critica a segregação imposta por modelos formais que exigem a identidade do indivíduo no todo que deveria se impor sobre ele. Aquele gesto antes de significar uma afronta a um símbolo cristão, representa uma atualidade da ignomínia sacrificial, da violência que as normas e regras morais estabelecem quando voltam-se contra o sentido do reconhecimento que requer o amor gracioso. Se há alguma atualidade da cruz é, em primeiro lugar, a de apontar para o reconhecimento de nossas diferenças que igualmente reclamam por amor gracioso e, em segundo lugar, a criticar a violência das segregações impostas por regimes hierárquicos que são ditados por elites políticas, econômicas, acadêmicas, culturais, religiosas, etc. Devemos louvar a coragem daquela que tomou a cruz de Cristo e o seguiu, sendo perseguida, assim, pelos neo-fariseus. E, como disse Paulo: contra o amor não há lei.

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

segunda-feira, junho 01, 2015

O TEMPO SATÂNICO



“No princípio criou Elohim os céus e a terra, e a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” (Gêneses 1: 1 -2)

Passaram-se milhares de anos desde que esta pequena peça foi escrita. E ainda continua um mistério. Por sua vez, os gregos não viam no tempo início e nem fim. Um grande helenista do século XIX, Friedrich Nietzsche, pensando grego, imaginou que sendo a matéria finita e o tempo infinito, os arranjos possíveis daquela, necessariamente, tragicamente, inelutavelmente, fariam com que retornássemos, sempre e infinitas vezes, ao mesmo lugar. Faremos exatamente o que já fizemos, estamos fazendo hoje e reincidiremos infinitas vezes a fazer. Resta-nos amar de tal maneira o que fazemos, que tal “amor fati” nos possibilite escapar deste nada que seria a vida.

Mas há, entre os gregos e Nietzsche, um outro grande pensador, neoplatônico-cristão, que tomando sua herança judia, percebeu no Gêneses bíblico uma indicação não infinita, mas finita do tempo. O tempo veio a ser, juntamente com a matéria (aquelas duas categorias apriorísticas de Kant: tempo-espaço) criado no princípio. O tempo e o espaço têm um princípio, o que quer dizer que são ambos são finitos. Assim, dizer “princípio” é entender que há o tempo zero, portanto, que há um primórdio do tempo, implicando numa origem e acontecimento no qual se fez tempo. Não havia tempo até que houve tempo, quando a terra e céus foram criados. Algo fora do tempo e anterior à matéria pôs a funcionar o tempo num espaço-tempo. Agostinho atribuiu esta criação de tempo e espaço a Deus.

Santo Agostinho pensou o tempo criado, mas buscou ir um pouco além do dizer sobre o princípio como o princípio do tempo, pois queria saber o que é o tempo. Perguntou sobre o tempo e percebeu o tempo como passado, presente e futuro, isto é, fluxo que escoa com o espaço, tornando possível que concebamos arranjos das coisas. Os arranjos que foram chamamos de passado e os arranjos que esperamos que venham a ocorrer, chamamos de futuro. Percebeu, contudo, que o passado é o tempo que foi, que não existe mais, o passado é um tempo que já não mais é, não mais existe. O futuro é o tempo que ainda não é, que ainda não existe. O presente é um instante que nunca é, pois que como instante está constrangido pelo tempo que não é mais e pelo tempo que ainda não é. O presente é fluxo contínuo, nunca sendo, jamais existindo. O tempo como o que não é. O tempo como privação do ser.

Mas se nos arrogamos a dizer que o tempo se apreende como privação do ser, permitimo-nos um salto tenebroso, diríamos, nefasto, demoníaco, diabólico. Se em suas Confissões, no capítulo X em diante, Agostinho tratará do tempo como possibilidade de dizer o que não é, como privação do ser, anteriormente, o bispo do Hipona nos havia dito, ainda em suas Confissões que o mal é privação do bem. O mal não tem essência, é esta privação essencial de bem, que nos permite compreender o incompreensível. Mas, o que ocorreria se aproximássemos estas duas assertivas, “o tempo como privação do ser, posto nunca ser” e “o mal como privação do bem”?

Se pudermos perceber em Agostinho que o “ser” e o “bem” são categorias indissociáveis, permutáveis, que dizem respeito ao mesmo, então poderemos ter um problema diante de nós. Sobretudo, pois, dentro da chave neoplatônica agostiniana, o Deus de sua fé é aquele que permanece sempre idêntico a si, imutável, incorruptível, não sujeito às mudanças. Deus é o Ser em si (numa fórmula kantiana), é aquele que é, que não muda e não está no tempo, não se coloca no tempo, mas fora do tempo, cria o tempo e o espaço, o espaço-tempo. Se é o Deus da criação do espaço-tempo e de tudo que pode ser compreendido neste espaço-tempo, também é o Deus que cria a privação.
Aqui devemos nos lembrar de Albert Einstein, e dizer que não há espaço sem tempo e não há tempo sem espaço, assim, não é espaço e tempo, mas espaço-tempo.

Retornando a Agostinho, Deus é o Ser, como tal é Belo, é Justo, é Verdadeiro e é o Bem, segundo a chave neoplatônica a que faz referência o Bispo. Essencialmente o Bem, o Belo, o Justo e o Verdadeiro são, em si, sempre idênticos a si mesmos, são Ser em si, constantes, eternos, imutáveis. Desta maneira, o Bem é em si enquanto Ser e o Ser é o Bem essencialmente, tanto quanto é Belo, Verdadeiro e Justo, não sujeitos ao tempo-espaço. Mais do que isto, Ser Bom é, necessariamente, Ser Belo, Ser Justo e Ser Verdadeiro.

Por sua vez, o tempo como privação é carência do Ser, consequentemente, do Bem, o que o torna identificável, enquanto carência, ao mal. O tempo apresenta-se a nós como o mal, segundo a carência do que é eterno. A literatura bíblica apenas vai identificar o mal como um anti-ente muito mais tarde, bem depois do Gênesis. O mal como anti-ente surgirá nos textos bíblicos em Jó.

Podemos lembrar aquela passagem quanto Deus estava nos céus e satanás entra de vesgueio em sua presença e procura um modo de corromper o servo de YHWH, do Senhor. Devemos notar que enquanto no Gêneses 1, Elohim cria o tempo-espaço, no diálogo de Jó usa-se o tetagrama YHWH, para se apontar ao inapontável, para trazer à possibilidade humana, espaço-temporal, o que não é dado no tempo-espaço. O tetragrama aponta para a impossibilidade de se tomar referência no espaço-tempo, ao que está além destas categorias, antes, é fundamento do categorial: as categorias são criação no espaço-tempo. O mal, representado em Jó pelo verbete satanás, procura um modo de corromper aquele homem, fazê-lo abandonar o Ser justo, conduzindo-o a priorizar a corrupção, a passagem, o não-ser do tempo que de nós retira os bens e a vida. A vida é o que não está no tempo, é o bem acima do tempo e que não se limita ao espaço. Mas satanás quer que Jó a limite, reduza-a ao tempo-espaço.

Satanás quer, ainda mais. A esposa de Jó diz: “renega teu Deus, e morre”, isto é, morra entregando-se ao circunstancial. Mas a conversa de satanás é ainda mais interessante, pois desenvolve-se na tentativa de mover Deus para o tempo, requerendo dele que socorra, no espaço, seu amado servo Jó. Se satanás ganhasse a parada, moveria o imóvel, corromperia o incorruptível, tornando o Ser em não ser, colocando-o no tempo movediço das circunstâncias. Reduziria a vida ao espaço-tempo que é sua negação enquanto carência radical. O que satanás pretendia dizer é: “Deus pois a Si no tempo-espaço, o que quer dizer que tanto o tempo-espaço se divinizaram, quanto Deus se espaço-temporalizou.”

Mas, devemos sublinhar que a palavra satanás vai surgir antes desta em Jó (o antes é apenas referência da sequência dos textos bíblicos como eles são organizados, que não respeitam o tempo, mas outra construção). Satanás surge, traduzida como oposição, impedimento, quando os israelitas saem do Egito e, pretendendo rumar à Canaã, são impedidos por déspotas locais. Satanás surge como o obstáculo, o impedimento para que a vida siga o caminho livre. É constrangimento, tirania, um poder de não ser livremente. É apenas na Idade Média tardia que satanás, como aquele que obstaculariza a vida livre se torna um ente e como tal pode ser ator principal em filmes de holywood e fazer fortunas nas Igrejas brasileiras. Mas vamos com calma com o andor que o demônio é um relógio de barro.

Retornando à tempo, lembramos que o tempo é carência do ser, do bem, como tal, pode se identificar com o mal, que é carência do bem, do ser. O tempo e o mal se co-pertencem e se interpenetram tanto quanto o Ser e o Bem. O tempo e o mal tomam, no texto bíblico o epiteto de “satanás”, “diabo”, “demônio”. O tempo é o diabo. O grande mistério que a teologia nos coloca é entender como que o Bem pode criar o mal, como que do bem advém o mal. O profeta Isaias dirá, em referência a Deus: “Eu fiz o bem e criei o mal”. A palavra “criar” que se utiliza Isaias é o conceito hebreu traduzível pela palavra “bará”, ou seja, fazer algo surgir sem que haja algo anterior a ele a partir do qual este venha a existir. Lembramo-nos aqui de Aristóteles e suas quatro causas. O filósofo grego pretende dizer que para que um artífice possa produzir algo, há de articular quatro causas: a formal, ou seja, uma representação imaginária da coisa (digamos, a ideia de um martelo); a causa material, ou seja, a matéria na qual irá dar ao martelo a forma imaginada (a madeira, o aço); a causa eficiente, ou seja, o artífice com sua competência e os dispositivos que transformarão a matéria na forma planejada; e a causa final, ou seja, o motivo de se fazer o martelo, o uso do martelo. O profeta Isaias e o autor do Gêneses rompem com este imperativo causal. O mal é sem causa, tanto a formal, pois o mal é carência do Ser, não há uma imagem, um ser-mal de onde se imagina o mal, mas é pura carência de ser; também, não há causa material, pois em Deus não se há carência alguma, portanto nele não há uma “matéria” para o mal; não há, contudo e sobretudo, a causa eficiente, pois Deus não cria como um artífice. Assim, ao não produzir, é a carência da ação que advém o mal; por fim, o mal carece de sentido, o mal não deseja, não tem vontade, não age motivado por qualquer anseio, a não ser tragar tudo sem nunca se saciar de nada. O mal é pura carência e como tal foi “bará”. É este desprovisão teleológica do mal que o torna tão efetivo, basta lembrar o trabalho de Hannah Arendt, sobre Eichmann em Jerusalém, o mal banal.

O tempo, como o mal em sua carência absoluta, é como que desprovido de  qualquer finalidade e por conta desta desfinalidade age como dissipador da finalidade que há na vida, e, assim, tenciona a vida para a mudança, tão mais acelerada quanto mais complexa se tornam os arranjos espaço-temporais da artificialidade. O que podemos pensar sobre a vida? A vida é o que está embrenhada no tempo, que se articula no tempo e no que o Gêneses chama de céus e terra, isto é, o espaço. A vida escoa pelo tempo e pelo espaço, como um sopro no barro, sem se tornar barro no tempo. A vida é o que continuamente se libera do tempo penetrando no espaço, e se mantém além do tempo como resistência ao tempo, ainda que o espacial se corrompa e mude. A vida como o que é livre do tempo, resiste à passagem, permanecendo igual a si mesma. Se Deus “bará” o mal, conforme nos fala o profeta, fez o bem, ao introjetar no espaço um tanto de si, sem se deixar apreender pelo espaço-tempo. O sopro divino é o que perpassa o espaço-tempo sem ser contido ali. O autor do Gêneses, então, dirá que Elohim “bará” o “aadam”, o humano à imagem de Deus, mas também fez o “aadam” do solo, da terra, do húmus. E ao fazer o “aadam”, soprou-lhe as narinas com a vida que não está no barro. A criação, exemplificada por “aadam”, traz em si a vida, que é divina, portanto inapreensivelmente incorruptível, mas que é perceptível no tempo-espaço. Embora a criação esteja imbricada no tempo, portanto, sujeita às mudanças e à corrupção, a vida é o que não se retém alí.

O que nos importa aqui, para além de outras considerações, é que a vida, que se volta a escapar da morte no tempo, torna-se complexa, e ao se complexificar se assujeita ao tempo do qual busca escapar, encontrando, assim, a morte. É como um eco daquelas palavras: “se comerdes do fruto do conhecimento, morrendo morrerás”, isto é, ao atentar para os limites do tempo e do espaço, visando escapar-se-lhe dele, encontrará neste artifício a morte que tentou não morrer. Assim é a vida em sua complexidade e o tempo, os seres mais complexos se entregam mais à morte. A morte é este abismo que se abre na criação e que estabelece as trevas do tempo entre a vida e o Ser. Quanto mais a vida se complexifica, mais se torna refém do fenômeno da existência temporal, distanciando-se do Ser, até que se aliene totalmente da experiência de ser, entregando-se totalmente à carência, que é o tempo. A própria vida deixa de ser vida, entregando-se ao que já foi e ao que ainda não é, fragmentando-se no nada. A experiência da vida se torna laboratorial, reprodutiva, massiva, matemática, industrial, trágica e inescapável: grega. O vão entre a vida e o Ser é preenchido pelas trevas do tempo e seus dispositivos alienantes: o poder tirânico da tragédia. A vida, por sua vez, é o que ocorre quando abstraímos do tempo, no tempo. É o que transpassa os corpos (o espaço) e que se liberta dos impedimentos satânicos que a desejam apreender e a submeter à pura passagem sem sentido.

Não é por menos que na complexidade de nossa contemporaneidade, ainda duas fórmulas temporais lutam por uma monotonia imperiosa: do Progresso e da História. O Progresso e a História são, cada uma a seu modo, as duas fórmulas trágicas causadas por um organismo complexo que, tentando fugir da morte, se entregam como bodes expiatórios ao tempo. O Progresso e a História são duas ficções narrativas que nos dizem como os organismo complexos que somos, devemos nos organizar a fim de realizar o trágico destino proposto como causa final. O Progresso e a História são os dois discursos legitimadores de nossa morte anunciada, como submissão irremediável ao tempo. Estamos todos nós, ainda hoje, como Jó, diante do tempo que corrompe o corpo, como anúncio de uma morte, isto é, a obstrução trágica da vida, como se esta se restringisse ao espaço-tempo. Estamos todos como Jó, face à angústia da passagem malévola, buscando a vida que insiste em nós, lutando contra as narrativas falaciosas que nos obrigam a dizer: maldiz a teu YHWH e morre! Mas podemos, quem sabe, permitirmo-nos ouvir a voz que diz: “Onde estavas tu quando Eu criei o tempo-espaço?”. Em outros termos: não é no tempo-espaço que a vida está, mas no indizível que se repousa numa tradução impossível de YHWH, não apreensível pelo que está limitado ao tempo e no espaço.



Em suma, o tempo é o demônio que abita no abismo entre a vida que se quer livre e o Criador que no-la deu. Neste abismo nefasto se introduziu, como angústia de quem se volta para olhar amedrontadamente o nada, do absolutamente carente, o poder de impor o tempo como dispositivo de imposição de morte. O abismo é o corte que a morte produz entre a vida livre e o que escapa ao tempo, preenchido com narrativas ficcionais e temerosas daqueles que temem ser esquecidos no nada. Resta o gládio, o bellum daqueles que entregues à carência trágica, lutam por manter na memória sua passagem efêmera, negando a vida, visando a glória efêmera. O gládio que corta e amplia o abismo, que se preenche de tempo, que afasta a vida pela morte. O gládio que buscando fazer triunfar a morte, quer manter viva na memória do que ainda não é, o passado de quem matou para viver. Seria esta a tragédia sacrificial que a Pascoa desnudou em sua falácia e violência? Se sim, abre-se a nós, incessantemente a vida como o que permanece constante, que diante da morte insiste em ver o fora do tempo a que podemos nos voltar. Enquanto o tempo se acelera na complexidade, a vida se mantém inalterada na simplicidade do Criador, que nos diz: “eu vim para que tenham vida...

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.