sexta-feira, novembro 20, 2015

NATUREZA




O que é a Natureza, afinal?

Antes de mais nada, como nos conta Heidegger, voltar-se à questão na forma de “o que é...?”, é buscar a essência daquilo que se pergunta. Este filósofo alemão nos dirá que foi Sócrates que colocou de maneira definitiva tal pergunta, ao formá-la na maneira grega: “Ti estin...?” (“O que é a metafísica”, Os Pensadores)

Quando dizemos “ti estin physis?” (o que é a natureza?) estaríamos perguntando sobre a essência de uma coisa que chamamos de “Natureza”. Mas, como nos dirá o mesmo Heidegger, a “Natureza”, ou “Natura” não se fala em grego, mas no latim, pois o grego diz “physis” , que é outra coisa que não a natureza. Em seu texto sobre a obra de arte dirá que na passagem do grego para o latim perdeu-se muito, isto é, na tradução abandonou-se o conceito original em prol de outro.


A physis grega era tudo o que há, o mundo, o existente. Tudo o que existe, é num cosmos fechado e finito que os gregos chamavam de physis. Assim, os deuses, os homens, os animais e vegetais, as matérias inertes, os quatro elementos, a matéria-prima, o Motor Imóvel, tudo está na physis. Até mesmo o tempo.


No cristianismo, herdeiro dos judeus, os deuses, mais propriamente Deus, não está na physis, mas é transcendente a ela, é o criador da Natureza. Não apenas da Natureza, mas dos céus (o não natural) e a terra (o natural). Neste momento a physis se torna natura, enquanto Deus transcende ao criado. 


O projeto monista de Spinoza trata de fazer coincidir Deus e Natureza, em sua velha fórmula: “Deus sive natura”, o que poderia ser dito como: “Deus, isto é, Natureza”. Mas a natureza de Spinoza já não é a physis dos gregos, certamente, pois não é habitada por deuses e daimonion.


Voltemos um pouco aos gregos. A physis é o que é, incriada e eterna, o cosmos de tudo o que há, como dissemos. O mundo das Ideias, de Platão, estava longe de ser uma dimensão transcendente radical, como o Deus dos cristãos. A transcendência do Mundo das Ideias de Platão se dá na imanência da physis. Isto quer dizer que transcende o mundo corruptível, mutável e temporal, projetando-se como um mundo do imutável, incorruptível, atemporal, contudo existente na physis. É o trabalho de paganização do cristianismo que faz o sincretismo entre o Mundo das Ideias de Platão e o Logos de João e Paulo. É a patrísitca dos séculos II ao VI que faz a mistura entre o Logos e o Nuos, a Inteligêngia que pensa o Mundo das Ideias e os seres, permitindo a passagem entre o Pai (o além do Ser) e a Criação (céu e terra).


Para os gregos, conhecer é deixar que nosso intelecto se conforme, tome a forma, identifique-se com as ideias. Tanto para Platão, quanto para Aristóteles, o mundo das coisas, o existente traz nele as formas, as ideias (eidos). Conhecer é uma ação de dar forma ao intelecto, identificando-o com as formas existentes. 


O cristianismo não alterou em muito este movimento. As formas, as ideias estão no mundo e devemos dar forma ao intelecto a fim de que se identifique com o mundo. A diferença mais marcante entre os gregos e os cristãos não está no processo de conhecimento, mas na teleologia, no propósito. Os neoplatônicos (herdeiros de Platão e, de certa maneira, de Aristóteles), associavam o conhecimento à salvação (soteros). Para eles (que não viram as bombas atômicas, os crimes ecológicos, o marxismo-stalinista e o facismo-nazismo) o conhecimento conduz a alma em retorno a Deus. A metáfora que usam é a de um corpo sujo que ao se lavar em águas límpidas, pode se tornar limpo, isto é, retornar à sua condição inicial. Alguns grupos gnósticos-cristão procuram fazer um sincretismo com os neoplatônicos. Outra metáfora que usaram é a de Deus como Sol. Os cristãos perceberam que ao nos aproximarmos do fogo, o que em primeiro momento pode se dar com salvação, num segundo se dará como queimadura e incineração.


A mudança epistemológica que o cristianismo introduziu foi a fé. Para os cristãos (agora nos aproximamos de Agostinho), a salvação articula-se com o conhecimento, mas o conhecimento verdadeiro (aquele que conduz o homem a Deus, sem causar queimaduras, ou transformá-lo em pó) é antecedido pela fé. Qual fé? Em Cristo como o Deus-homem. A fé permitiria um conhecimento tal que o homem retornaria a Deus sem o terror de sua presença aniquiladora. Contudo, o conhecimento possível é o conhecimento sobre o mundo como identidade entre as formas dadas e o intelecto. Tomás de Aquino, mais de oitocentos anos depois de Agostinho, oferece as provas da existência de Deus apenas olhando para o mundo. Devemos notar que Aquino não oferece uma prova da existência do Deus Pai, mas do Deus-Logos, aquele que transcendendo à Natureza Criada, ainda é imanente a ela enquanto Homem-Deus. O Deus Pai, o além do Ser apenas é acessível pro um salto no escuro (aqui nos permitimos uma apropriação diacrônica, tomando um conceito de Kierkegaard, mas algo que ressoa mais próximo de Agostinho, quando se diz: “creio por ser absurdo”), um conhecimento analógico permitido pela fé. 


Uma vez que os cristão se valem, ou, são tributários da cosmologia grega, transformando-a de Physis para Natura, contudo entendem-na como o existente que transcende a corrupção, a mudança, na qual podemos conhecer as formas, as ideias. A Physis e a Natureza, para além da matéria, tem uma forma que não se corrompe. Mas com a passagem para a Modernidade, tomando as heranças do sujeito do conhecimento plantado por Aquino, o Ocidente promoveu uma mudança. Não mais a Natureza haveria de nos oferecer as formas e o intelecto haveria tomar estas formas em si, mas o sujeito do conhecimento haveria de dizer coisas sobre o mundo, sobre a Natureza. O sujeito do conhecimento haveria de produzir, agir em prol de um conhecimento claro e distinto sobre o mundo. Não é a Natureza que fala ao homem, mas o sujeito que fala sobre a Natureza.


Contudo, a Natureza continua sendo aquele reserva de verdade, se segurança, de imutabilidade. Galileu nos dirá que o Cosmos é um livro aberto cuja linguagem é a matemática, está nos dizendo que leis imutáveis no Universo, tanto quanto podemos dizer que 2=2. Newton trabalhará, por sua vez, com o propósito de encontrar na Natureza as Leis cósmicas, isto é, as Leis que algum relojoeiro ali determinou. A Natureza tem um Legislador, que, tal qual este, aquela é regida por lei fixas, constante, contínuas. Assim Newton descobre a Lei da Gravitação Universal: uma Lei, imutável no tempo e no espaço, que rege o movimento dos corpos a despeito de quais sejam eles.


 John Locke vai propor uma Natureza Humana a partir destas crenças na imutabilidade de leis intrínsecas e imutáveis. A Natureza Humana está imbricada, ou dada pela racionalidade, certa racionalidade. Mais tarde Adam Smith vai aproximar Locke e Hobbes e trabalhar a Natureza Humana como racionalidade e auto-interesse. O fato é que o liberalismo de Locke e Smith são tributários à Lei determinada por um relojoeiro, esta natureza é imutável, incorruptível, existente a despeito do espaço e do tempo: todos os homens, em todos os lugares e em todos os tempos trarão em si esta natureza.


Kant muda um pouco esta ideia, fendendo os homens em abstrato e concretos. O homem concreto é cada um de nós, com suas vidas limitadas no tempo e no espaço, sujeitos à corrupção, mutações, e voltados para as circunstâncias. O homem abstrato é o resultado do encontro entre o homem concreto e os universais, isto é, aquilo que nos faz aproximar da verdade. O homem abstrato transcende o homem concreto, pois não está preso ao tempo e ao espaço. Aqueles valores, por exemplo morais, que são universalizáveis, que podem e devem servir de conduta moral a qualquer um, a despeito da cultura, da história, da sociedade, etc., este é um valor transcendente do homem abstrato. Kant opera tendo como ponto de fuga, lugar de segurança uma metafísica que se funda na verdade, não passível de ser reconhecida, mas lugar para onde nos movemos. Haveria uma certa natureza humana transcendente que nos permite nos mover para lá por meio de proposições universais. 


O mesmo artifício epistemológico de Newton está em ação aqui em Locke, Smith e Kant: Há um relojoeiro criador que determinou a possibilidade de leis universais e cabe ao homem, seguindo estas leis que estão em si e que lhe confere uma Natureza Humana, descobri-las. Neste ponto precisamos lembrar da Escolástica. Para eles havia quatro níveis de leis: a Lei em Deus (que rege misteriosamente sua conduta), a Lei Revelada (nas Escrituras), a Lei da Natureza (determinada pelo Logos, imutável) e a lei dos homens. Uma lei humana justa é aquela que se funda e se volta à Lei da Natureza, esta por sua vez, se funda e se volta para o Logos, que contempla a Deus. Locke, Smith, Hobbes, Kant, todos estavam em busca de uma lei humana que se fundasse e que contemplasse a Lei da Natureza. Não há justiça maior do que um homem que age conforme a Lei da Natureza que vê inscrita em si. A lei da liberdade é a Natureza do Homem, no caso de Kant, do homem abstrato.


Contudo, o movimento epistemológico promovido pela Modernidade já trazia consigo a questão, a tortura da metafísica. Darwin, quando escreve “A origem das espécies”, promove duas mudanças: primeiro, a Natureza deixa de ser imutável, um lugar seguro, um ponto de apoio; mas, as Leis da Natureza estão inscritas nos corpos. O que isto quer dizer? Que as ideias que dão formas aos entes, às coisa no mundo não são imutáveis como queria Platão, mas são mutáveis. Aquilo que um dia foi uma gosma no oceano, pode se tornar um elefante, passados alguns milênios, e um elefante daqui alguns milênios se tornará uma animal (caso não seja extinto por nós antes) completamente diferente. O mesmo se aplica ao humano, que passou a ser um animal entre animais. Contudo a Lei que promove estas mudança continua imutável. O darwinismo ainda é uma metafísica que não se livrou da Lei da Natureza, pois a Lei agora é a adaptação das formas às contingências. Há leis na Natureza que promovem adaptações. Embora Darwin tenha feito uma ferida mortal na cosmologia de Platão e Aristóteles, ele não se livrou do Relojoeiro, antes, exige sua presença.


O que Darwin, de fato, nos permite pensar é que a natureza deixa de ser a Natureza. Assim, a partir de Darwin, podemos perguntar novamente: O que é a Natureza, afinal? Se buscamos uma resposta sobre a essência da Natureza, aquilo que faz da Natureza algo não sujeito às mutações, às corrupções, então devemos responder: Não há a Natureza! É a partir do esfacelamento do mito da Natureza como o porto seguro, na qual há Leis que asseguram sua incorruptibilidade e imutabilidade, como um espelho analógico de Deus, que alguns correram para dizer: “Deus está morto!” (Heiner e Nietzsche, por exemplo). Se Deus sive Natura e não há a Natureza, então este monismo morreu, e já vai tarde. Mais do que esta corrida armamentista contra Deus, Foucault percebeu, muito bem, que se a Natureza não é essencial, não existe como conceito possível, então a Natureza Humana é uma quimera, um mito, uma falácia. Desta maneira, não é Deus quem morreu, mas a Natureza Humana, que morreu. O homem, abstrato, foi desnaturalizado, desessencializado. 


A guilhotina de Robespierre, os campos de extermínio nazistas, os gulags marxistas-stalinistas, os pelotões de fuzilamento marxista-maoista, as ditaduras militares, Hiroshima e Nagasaki, as barreiras de Mariana, a violência urbana, as desigualdades sociais, etc., atestariam a morte da humanidade. O niilismo nietzschiniano não estaria abrindo, em quaisquer uma de suas possibilidades, ao darwinismo social e das hierarquias sociais ordenadas pela Lei do mais forte, apto?


 A questão que poderíamos pensar, talvez, seria: poderia a humanidade buscar na Lei da Natureza uma referência tal que agindo segundo esta Lei descumpra a Lei Natural e transcenda sua natureza brutal, predatória? Uma Lei que nos permita romper com as fronteiras espaço-temporais, mesmo que seja transitoriamente, e que nos faça voltar a qualquer um como o elemento vital da existência de todos? Uma Lei da Solidariedade e da Hospitalidade que tanto seja Natural, enquanto perceba que todos estamos e somos Natureza, indistintamente, mas que rompa com uma pretensa Natureza predatória? Uma Lei que achemos inscrita, sem que saibamos por meio de qual decreto, em algum canto de nosso mundo. Uma Lei que nos permitisse o encontro com nossa humanidade, enquanto finitude e limitações, inacabamento e incompletude, mutação e adaptação, mas que nos tornasse divinos, acolhesse em nós a divindade daquele que amando não levou em conta a si mesmo, mas se moveu em favor do outro. Uma Lei na natureza sem a Natureza da Lei.



Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.