Em “Cultura e razão prática”,
Marshall Sahlins (1979) defende a idéia de que a sociedade capitalista,
orientada pela racionalidade econômica, como que desprovida das dimensões
culturais e do simbólico, é, na verdade, por si mesma, uma forma específica de
ordem cultural, pois o universo da produção e do consumo constituem, por meio
de suas estruturas econômicas e sociais, produção simbólica dessa sociedade.
Vemos, portanto, que não apenas as sociedades ditas exóticas são providas de
sistemas de significação que orientam sua dinâmica social, mas a dita
racionalização econômica engendra sistemas de valores que passam a ordenar a
sociabilidade e tornam-se representáveis por meio das atividades
“racionalizantes” de produção e consumo de bens, produtos que, hoje em dia, são
muito menos funcionais e muito mais representações simbólicas de estratos
sociais e relações verticais de poder, servindo ao antropólogo como bons para
pensar a sociedade em que circulam. Se a economia rege a estrutura e as
dinâmicas sociais desses grupos, por que não convertê-la em reflexão
antropológica em suas esferas mais representativas – a produção e o consumo
que, como práticas verdadeiramente rituais das sociedades complexas,
representam parte fundamental do sistema de representações na sociedade
capitalista?
Podemos, portanto, argumentar que
uma antropologia das sociedades complexas deva voltar seus esforços de
investigação às estruturas determinantes de tais sociedades, e não à periferia
delas, de forma que uma etnografia das relações capitalistas de produção e
consumo constitui uma verdadeira etnografia das sociedades complexas, pois
investiga não os resultados do sistema capitalista entre as minorias, mas a forma
como esse sistema se constitui e se reproduz em suas esferas principais, pesquisando
a maneira como sua dinâmica racionalizante orienta as determinantes culturais e
os sistemas simbólicos dessas sociedades. Enfatizamos aqui a dimensão simbólica
do consumo como prática de representação das estruturas de significação da
sociedade capitalista. Consumir torna-se, sob o ponto de vista antropológico,
verdadeira prática ritual que representa a organização social e o universo
simbólico dessas sociedades, pois, conforme Jean Baudrillard (1997: 206),
o consumo é um modo ativo de relação (não
apenas com os objetos, mas com a coletividade e com o mundo), um modo de
atividade sistemática e de resposta global em que se funda todo o nosso sistema
cultural [...]. O consumo, pelo fato de possuir um sentido, é uma atividade de
manipulação sistemática de signos.
Esse modo ativo de relação de que
nos fala Baudrillard sugere que o consumo é o deslocamento das relações interpessoais
para a representação delas próprias por meio dos objetos. O indivíduo não
consome a materialidade do produto (razão pela qual o aspecto funcional dos
produtos de grandes marcas é menos importante que seu valor de representação), mas
os significados que, por intermédio do produto, geram um conluio social em
torno de valores compartilhados pela sociedade capitalista.
“Por uma etnografia das práticas de consumo” - Valéria
Brandini
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Tradução de Artur Mourão. Rio de Janeiro:
Elfos, 1995.
______________. Para uma crítica da economia política do signo. São Paulo: Martins Fontes,
1983.
______________. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1997
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Tradução de Artur Mourão. Rio de Janeiro:
Elfos, 1995.
______________. Para uma crítica da economia política do signo. São Paulo: Martins Fontes,
1983.
______________. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1997