sábado, novembro 16, 2013

O PAPEL QUE AS CRENÇAS RELIGIOSAS DESEMPENHAM NA VIDA SOCIAL


O estudo da religião é tema constitutivo e fundador da sociologia. Tanto Karl Marx, como Émile Durkheim e Max Weber se interessaram pela elaboração de teorias visando compreender aspectos da vida religiosa e sua influência na sociedade.

Os estudos produzidos por Weber, porém, sem dúvida alguma tiveram maior amplitude teórica e empírica. Weber analisou e comparou diversas religiões que existiram e que ainda existem no mundo, avaliando o papel que as crenças religiosas exercem na conduta dos indivíduos em sociedade.

Num plano mais geral, o autor desvelou o potencial que a religião tem de provocar transformações na ordem social, sejam elas na esfera da economia, da política ou da cultura em geral.

A sociologia compreensiva

Weber jamais aceitou os pressupostos do materialismo histórico (teoria elaborada por Karl Marx e Friedrich Engels) como único modelo teórico-metodológico válido para compreensão da realidade social.

De acordo com a teoria marxista, a forma como o homem produz e reproduz sua sobrevivência (ou seja, a maneira como busca satisfazer suas necessidades materiais, indispensáveis à manutenção da própria vida) exerce uma influência determinante sobre as outras esferas da vida social, tais como a religião, a cultura, as instituições políticas e jurídicas, etc.

A sociologia compreensiva formulada por Weber se contrapõe ao determinismo econômico ao enfatizar que nem sempre as diversas esferas da vida social derivam (ou estão subordinadas) da estrutura econômica de uma sociedade. Há casos em que ocorre o inverso, isto é, as ideias, valores éticos e concepções de mundo (ou seja, as representações sociais) podem desempenhar um papel crucial na produção da vida material.

Religiosidade e racionalidade econômica

Weber atribuiu às crenças e valores religiosos um papel importante na conduta dos indivíduos em sociedade. Num dos seus livros mais proeminentes, "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", ele defendeu a tese de que a religião protestante exerceu uma poderosa influência no surgimento do modo de produção capitalista.

Com base em dados estatísticos extraídos da sociedade americana, ele demonstra que, naquele país, os líderes do mundo dos negócios e os proprietários de capitais eram, na maioria dos casos, adeptos do protestantismo. Weber descreveu e analisou os valores e princípios éticos constitutivos da crença religiosa protestante e apontou sua adequação à racionalidade inerente ao empreendimento capitalista.

Ethos calvinista e espírito do capitalismo

A Reforma Protestante foi um movimento religioso que se contrapôs aos preceitos e dogmas do catolicismo. A partir dela, surgiram várias seitas protestantes, entre elas as que se basearam no pensamento de João Calvino.

Weber observou que a expansão das seitas calvinistas na Inglaterra coincidiu com o aparecimento do modo de produção capitalista. Os preceitos religiosos constitutivos da doutrina calvinista levaram seus adeptos a adotarem um estilo de vida metódico em todos os aspectos, denominado por Weber de ascetismo.


ethos de vida característico do ascetismo calvinista levava os crentes a valorizarem o trabalho secular (mundano), o lucro e a acumulação de riquezas materiais. Enquanto o católico buscava assegurar a salvação pela virtude, pelo arrependimento e pela penitência, os adeptos do calvinismo - e do protestantismo de modo geral - viviam sem saber se seriam salvos ou condenados.


Essa incerteza levava-os a buscarem, no decorrer de suas vidas, possíveis sinais de concessão da graça divina. O enriquecimento econômico, por exemplo, era um sinal que Deus daria aos predestinados à salvação, aos "escolhidos". Por conta disso, os calvinistas desenvolveram um rígido e disciplinado modo vida, que os levava a concentrarem seus esforços na acumulação material.

As atividades econômicas peculiares ao empreendimento capitalista - ou seja, a extração pacífica da mais-valia (do lucro), através da compra e remuneração da mão de obra do trabalhador livre - foram muito beneficiadas porque se adequaram ao estilo de vida dos crentes protestantes.

ethos calvinista concebe o trabalho como uma vocação. A disciplina moral calvinista levava os crentes a pouparem seus ganhos e, ao mesmo tempo, os inibia de usarem os lucros para o consumo de bens luxuosos. Por isso, os lucros geralmente eram reinvestidos no próprio empreendimento capitalista, gerando um movimento cíclico de acumulação/reinvestimento/acumulação.


Afinidade eletiva

Weber emprega o conceito de afinidade eletiva a fim de explicar a influência que os valores religiosos calvinistas exerceram no sentido de "desencadear" o capitalismo. Uma vez desencadeados, os valores e práticas religiosas calvinistas deixam de ser "determinantes" para a permanência e a continuidade do capitalismo.


O conceito de afinidade eletiva é mais complexo do que a concepção de "causas determinantes". Há uma correspondência entre o ethos calvinista (espírito do capitalismo) e o empreendimento capitalista, mas é impossível apresentar uma explicação com base nos pressupostos de "causa" e "efeito".

Religiões orientais

É interessante compararmos "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo" com outros estudos de Weber, em especial aqueles que se referem às religiões asiáticas, como, por exemplo, o hinduísmo e outras religiões que são a base das sociedades de castas.

Nesses casos, a religião serviria para manter uma ordem social e econômica acentuadamente hierarquizada e estática, ou seja, sem qualquer possibilidade de haver mobilidade e mudança social. O caso da Índia é interessante.

Há décadas, o Partido Comunista da Índia, considerado uma das grandes forças políticas daquele país, tentou em vão aplicar programas políticos de melhoria das condições de vida das populações mais pobres. Sempre houve uma enorme resistência social, que levou ao fracasso inúmeros programas políticos de caráter socialista (que preconizavam igualdade e justiça social), pois a sociedade de castas está fortemente assentada sobre preceitos religiosos muito arraigados, que concebem as desigualdades e diferenças sociais como manifestações da vontade divina.


Renato Cancian, Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação é cientista social, mestre em sociologia-política e doutorando em ciências sociais. É autor do livro "Comissão Justiça e Paz de São Paulo: gênese e atuação política - 1972-1985".

sábado, outubro 12, 2013

SER E PALAVRA


O “Ser”, embora para o pensamento discursivo não seja um atributo, é a expressão de uma pura relação e, para a consciência religiosa, o mais elevado atributo possível, um resumo, enfim, de todos os outros atributos particulares, sendo referido como própria “Palavra”. Estabelece-se então aquela equação na qual “Ser” e “Palavra” são identificados:

Só uma designação pode caber a este Deus, junto à que o qualifica como Criador do mundo, formador de homens e deuses: a do Ser simplesmente. Ele engendra e não é engendrado, pare e não é parido, ele mesmo é o Ser, o Constante em tudo, o Permanente em tudo. Por isso, Ele “é desde o princípio”, “é desde a origem” e tudo o que é, chegou a ser depois que Ele foi. Todos os nomes divinos isolados, concretos e individuais, foram aqui fundidos no único nome do Ser; o divino exclui todo o atributo particular, não pode mais ser descrito por nenhuma coisa e só pode ser predicado por si mesmo. (CASSIRER, 1985)

Não obstante, outros dois desenvolvimentos acontecerão a par desta nova configuração da divindade, agora num patamar místico. Quando o sentido do divino se abre ao ser da Pessoa, para além do da coisa, o pronome pessoal agrega-se ao “Ser”, daí derivando o “Eu Sou”. Estamos aqui diante do monoteísmo puro, no qual vai entroncar-se a tradição judaico cristã. Para Cassirer, explicando a importância deste passo na evolução da consciência religiosa:

“Só por meio desta transformação da existência objetiva no ser pessoal se eleva verdadeiramente o divino à esfera do “incondicionado”, a um domínio que não pode ser designado por nenhuma analogia com uma coisa ou nome de coisa. De todos os meios da linguagem, só restaram as expressões pessoais, os pronomes pessoais, para a Sua designação: “Eu sou Ele”; “Eu sou o Primeiro e o Último”, conforme está escrito nos livros proféticos.” (CASSIRER, 1985)

O segundo desenvolvimento referido dá-se através da junção mais íntima das vias de contemplação religiosa centradas na dimensão do “Ser”, abstração das coisas em particular que encerra em si o que é comum a todas as coisas, e na dimensão do “Eu”, abstração das pessoas em concreto que engloba o que é comum à existência de todas as pessoas. Recorrendo aos termos da tradição hindu, Cassirer sublinha a ocorrência de uma identificação entre “Ser” e “Eu”, Brahman e Atman, objeto e sujeito, resultando daqui um “Eu-mesmo”. No entanto, porque agora a linguagem já não é capaz, como em anteriores etapas, de abranger a unidade entre sujeito e objeto, a consciência religiosa vai libertar-se do poder da palavra e da linguagem, abrindo-se mais marcadamente à esfera do transcendente, do impossível de alcançar pela palavra e pelo conceito. Neste ponto surge a teologia negativa, caracterizada por um procedimento apofático que remete sempre para um “mais além” que, embora enraizado no imanente, é inalcançável pela palavra humana: “The more God is in all things, the more he is outside them. The more He is within, the more without.” (M. ECKHART, cit. in HUXLEY, 2004).

Cassirer, relativamente ao seu estudo deste desenvolvimento da consciência mítico-religiosa a par do desenvolvimento da apreensão linguística, vai afirmar:

“Há, pois, no âmbito da percepção mítico-religiosa um “inefável” de diferentes ordens, um deles marca o limite inferior da expressão verbal, enquanto o outro representa o limite superior; entre ambos os confins, traçados pela própria natureza da expressão verbal, a linguagem pode agora mover-se livremente, exibir toda a riqueza e profusão concreta de seu poder de configuração.” (CASSIRER, 1985)

A palavra, nascendo, permitirá que o mundo externo se torne apreensível para a consciência humana. O ato da denominação gera a ordem, o cosmos, resgatando o ser humano do caos. Já num estrato superior, a linguagem dá-se conta dos seus limites, percebendo, por via do desenvolvimento da consciência lógica a par da consciência mítico-religiosa, a impossibilidade de comunicação da unidade entre sujeito e objeto intuída pela segunda. A comunicação da percepção de tal unidade, no limite, nunca será viável, pois o domínio dessa comunicação não poderá ser outro que o da consciência mítico-religiosa, mas a linguagem, não obstante, apontará, como que vigiando e dando em si mesma, lugar ao que não pode ser dito, para a esfera transcendente e sobre-humana na qual se conservará a validade dessa percepção. No entanto, os grandes místicos continuarão a afirmar a viabilidade de uma certa experiência dessa não-dualidade, apesar da inexequibilidade da sua recolha no seio das palavras.

Bibliografia

Cassirer, Ernest. Linguagem, Mito e Religião. Trad. Rui Reininho. Porto: Rés, 1976.

domingo, setembro 15, 2013

RELIGIÃO E MORTE


O que acontece com o ser humano que, de repente, de um instante para outro, cessa de existir? Qual a origem do ser humano e para onde ele vai?
A morte continua sendo um grande enigma. Inúmeros filósofos, de todos os tempos, tentaram em vão, jogar um pouco de luz nessa escuridão. A origem e o fim continuam sendo um grande enigma. Alguns convivem melhor com o problema outros vivem (aliás a vida aqui aparece como “uma ponte que se lança entre esses dois lados obscuros do existir humano: a origem e o fim” J.B. Libanio) angustiados e, por isso mesmo, dizem alguns especialistas, se deparam com ela (a morte) mais cedo. Uma coisa é certa, tanto a origem do homem (nascimento) quanto o fim (a morte) escapam à experiência pessoal. Ninguém vivencia a própria morte. Ela chega e acontece sempre com o outro. A religião entra então para tentar responder a essa angustia existencial.

É sabido que o homem, invariavelmente, atribui a causas divinas aquilo que não sabe explicar de outro modo, é dessa ignorância também nasce o temor dos deuses e da morte. Lucrécio apresenta a morte como um problema essencial a ser enfrentado pelo ser humano, ela seria a origem de suas dores e a grende responsável pelo avanço do poder da religião. O medo da morte seria a maior das apreensões do indivíduo ao longo de sua existência; ele (o medo) seria promovido e mantido pela religião, como forma de controle social.
O indivíduo passa seus dias tentando ludibriar esse seu destino cruel, buscando evitar a morte e sentindo que é vã essa sua tentativa, sofre e se desespera, muitas vezes sem vivenciar o prazer que a vida pode oferecer. Nas sábias palavras do Dalai Lama parafraseando Confúcio:

“... Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro se esquecem do presente de forma que acabam por não viver nem no presente nem no futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido.”
Ainda segundo o entendimento de Lucrécio, o medo da morte seria também, o grande responsável pela corrida desenfreada do ser humano em direção ao acúmulo de bens, honrarias e poder. A fim de suplantar esse medo, o indivíduo não respeita limites, nem os seus próprios. Além de fazer crescer a inveja impedindo o homem de desenvolver a amizade, a boa-vontade e a virtude. O medo da morte seria também o principal responsável pela traição e pela exacerbação de temores e fantasias infantis. O homem passa a temer, não os perigos reais e concretos, mas o que é imaginário e irreal. Conclui, contudo, que nada na morte deve ser temido pelo homem, uma vez que não pode ser infeliz quem não existe e, depois que a morte lhe arrebata a vida, estar morto é o mesmo que não haver nascido.

Titus Lucrécius Carus, viveu em Roma na primeira metade do século I a.C. O ponto de partida da filosofia epicurista de Lucrécio é a verificação da infelicidade humana ¾ todo homem quer ser feliz, mas constrói sobre bases falsas a sua felicidade e sofre. O De rerum natura é concebido como um poema épico para chamar o homem à razão; é um poema contra o medo, que desvenda toda a verdade sobre a natureza, com o objetivo de permitir ao romano o gozo da ataraxia e mostrar-lhe que não precisa temer a morte, não precisa temer os Deuses, nem tampouco o Aqueronte; os fenômenos que atribui aos Deuses resultam de causas naturais e é preciso que se afaste da ignorância pela compreensão da natureza

sábado, agosto 31, 2013

ANDROGENIA


CAÇADORES E COLETORES

Fala-se que o homem e a mulher têm diferenças intrínsecas em seus comportamentos sociais e isto, entre tantas outras coisas, é oriundo da forma como o ser humano se organizava na busca da obtenção do alimento. O macho era o caçador e a fêmea uma coletora.

Caçadores ou predadores têm características muito peculiares na busca de alimentos. A caçada é uma técnica muito específica onde o predador deve escolher previamente sua caça e estabelecer uma estratégia que reúna precisão, surpresa, oportunidade, necessidade, vulnerabilidade da presa, etc. Uma vez escolhida a presa, o caçador aguarda as condições propícias para o bote. As técnicas de caça podem ser empregadas em bando, como no caso dos cães, ou individuais, como no caso dos leopardos. O que se deve ressaltar é que a caça tem uma técnica precisa, objetiva e que concentra esforços e energia.

A coleta é uma atividade diametralmente oposta. Os animais que se lançam na floresta em busca de alimentos têm em mente um cardápio aceitável, um menu possível e dentro deste menu deve verificar a qualidade do fruto, ou seja, o coletor trabalha dentro de uma conduta matricial: dispersão e qualidade, isto é, há os frutos verdes, podres e maduros, e há as laranjas, limões, abacaxis, amoras, goiabas, etc. As técnicas de colheita não envolvem surpresa, esforço concentrado, energia focada, precisão, antes, paciência, perseverança, repetição, etc.

O exemplo mais preciso que lembramos à respeito da questão do homem caçador e mulher coletora é o processo de compra. Homens, em média, estão em casa e pensam: preciso comprar uma camisa de no máximo x reais. Neste instante ele pensa na camisa, na loja, na forma de chegar lá e a forma de pagamento, após todo este planejamento preciso, executa ritualmente, num tempo máximo de quinze minutos. As mulheres pensam: preciso ir ao shopping... cinco horas depois ainda estão escolhendo brincos, meias, perfumes, saias, etc.

HOMENS SÃO “NEWTONIANOS” E MULHERES SÃO "HEISENBERGNIANAS”

Homens são racionais, lógicos, calculistas, planejadores, estrategistas, formalistas, enérgicos, duros, estruturados: homens são caçadores. Homens a partir se suas próprias lógicas internas, das verdades individuais, cálculos de riscos e benefícios, cenários e projeções, métodos e técnicas matemáticas, tomam decisões. Decisões endógenas.

Mulheres são intuitivas, táticas, detalhistas, multi-tarefas, estéticas, flexíveis, maleáveis, sensíveis: mulheres são coletoras. Mulheres tomam decisões a partir de suas inserções no mundo, pois percebem o cheiro, as cores, as formas e dialogam com isto nos processos decisórios. Ela não está tão preocupada com as reservas energéticas na hora de obter alimento, mas com a qualidade do fruto que deve consumir. Decisões exógenas.

O Homem é cartesiano, racional puro, dialético. A Mulher é holista, inter-disciplinar, fluídica.

HOMEM É MODERNO. MULHER É PÓS-MODERNA

A Modernidade foi, e é, um pensamento que crê na auto-suficiência humana para obter conhecimentos, desenvolver técnicas e produzir tecnologias que supram todas as necessidades humanas, que visa a felicidade e liberdade.

A Pós-Modernidade não é uma negação da Modernidade, antes é uma negação da metafísica e das metas-narrativas. De fato, aqueles que falam Pós-Modernidade, falam a partir da premissa de que esta seja o meio pelo qual a humanidade cumpra os ideais Modernos: o homem/mulher ser senhor e agente de sua história e por meio de seu esforço auto-suficiente - antropocentrismo - obter felicidade e liberdade. Os ideais Modernos se mantêm, assim, a Pós-Modernidade não nega, antes, incorpora a Modernidade: Moderno e Pós-Moderno misturam os ideais e as técnicas.

A virada da modernidade para a pós-modernidade, da ruptura com o fundamento metafísico, do suporte num Deus Transcendental, fim e finalidade de todo conhecimento, dá-se quando Deus morre e “profetiza-se” um “super-homem” que seja ele mesmo deus. Este andrógeno – macho e fêmea – depois de sobreviver a este trânsito da velha ordem, para a nova ordem, poderia, segundo este profecia, colocar o “super-homem” num lugar soberano, cuja glória fosse restaurada: um trono acima de todos os tronos.

Uma figura iconográfica seria os reis da antiguidade: os reis da Babilônia e os reis Filisteus, ou de Tiro e Sidom. Exemplificando este sentimento, que não é exatamente Pós-Moderno, do deus-rei-homem, temos a fala de um outro profeta: “De novo veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Filho do homem, dize ao príncipe de Tiro: Assim diz o Senhor Deus: Visto como se elevou o teu coração, e disseste: Eu sou um deus, na cadeira dos deuses me assento, no meio dos mares; todavia tu és homem, e não deus, embora consideres o teu coração como se fora o coração de um deus.”

Como disse Santo Agostinho, o pecado do homem é a soberba. Diríamos até, que temos uma visão muito moralista do pecado, aquela coisa viciada que sempre moraliza a fala e vê homossexualidade, adultério, prostituição – o sexo é um prato cheio – e tantos outros que visam prender-nos à culpa e ao juízo, deixando de lado os símbolos e significações da fala, da expressão da poíesis. Este pré-conceito nos impede de lermos a real mensagem, que jaz no texto.

Esta poíesis de todo super-homem, este ato de fazer se dá na terra, lugar das experiências empíricas, o pó de onde veio o Homem Adão, a mãe lírica dos druidas, das bruxas e dos pós-modernos.

Quanto ainda poderíamos, diante deste niilismo contemporâneo, desta loucura do espírito, desta busca por re-significações... mas não quero enfadar-nos com alucinações de quem está lendo demais e desconstruíndo demais e esperando mais. E como trabalhamos, ainda, somente com textos, vamos ouvir uma música do Gilberto Gil e imaginar que não estamos apenas lendo-a, para relaxarmos e, quem sabe, coletar alguns frutinhos.

Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter

Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara
É a porção melhor que trago em mim agora
É o que me faz viver

Quem dera, pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera
Ser o verão no apogeu da primavera
Só por ela ser

Quem sabe, o super-homem venha nos restituir a glória
Mudando como um Deus o curso da história
Por causa da mulher (bis)


Super-Homem: a canção
Gilberto Gil

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

domingo, agosto 25, 2013

O CAÇADOR E O JARDINEIRO


Quando perguntado sobre o "fim das utopias" Zigmunt Bauman, um dos pensadores contemporâneos que mais têm traduzido obras que refletem os tempos contemporâneos, nascido na Polônia em 1925, que vive, leciona e produz a partir da Inglaterra, responde com as seguintes metáforas:


"Na era pré-moderna, a metáfora que simboliza a presença humana é a do caçador. A principal tarefa do caçador é defender os terrenos de sua ação de toda e qualquer interferência humana, a fim de defender e preservar, por assim dizer , "o equilíbrio natural". A ação do caçador repousa sobre a crença de que as coisas estão no seu melhor estágio quando não estão com reparos; de que o mundo é um sistema divino em que cada criatura tem seu lugar legítimo e funcional; e de que mesmo os seres humanos têm habilidades mentais demasiado limitadas para compreender a sabedoria e harmonia da concepção de Deus.


Já no mundo moderno, a metáfora da humanidade é a do jardineiro. O jardineiro não assume que não haveria ordem no mundo, mas que ela depende da constante atenção e esforço de cada um. Os jardineiros sabem bem que tipos de plantas devem e não devem crescer e que tudo está sob seus cuidados. Ele trabalha primeiramente com um arranjo feito em sua cabeça e depois realiza. Ele força a sua concepção prévia, o seu enredo, incentivando o crescimento de certos tipos de plantas e destruindo aquelas que não são desejáveis, as ervas "daninhas". É do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias. Se ouvimos discursos que pregam o fim das utopias, é porque o jardineiro está sendo trocado, novamente, pela ideia do caçador."

Também responde com a mesma desenvoltura e criatividade sobre o que significa essas metáforas para a humanidade contemporânea:

"Ao contrário do momento em que um dos tipos passou a prevalecer, o caçador não podia cuidar do global equilíbrio das coisas, natural ou artificial. A única tarefa do caçador é perseguir outros caçadores, matar o suficiente para encher seu reservatório. A maioria dos caçadores não considera que seja sua responsabilidade garantir a oferta na floresta para outros, que haja reposição do que foi tirado. Se as madeiras de uma floresta forem relativamente esvaziadas pela sua ação, ele acha que pode se deslocar para outra floresta e reiniciar sua atividade. Pode ocorrer aos caçadores que um dia, em um futuro distante e indefinido, o planeta poderia esgotar suas reservas, mas isso não é a sua preocupação imediata, isso não é uma perspectiva sobre a qual um único caçador, ou uma "associação de caçadores" se sentiria obrigado a refletir, muito menos a fazer qualquer coisa.

Estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de "individualização". E precisamos sempre tentar a difícil tarefa de detectar um jardineiro que contempla a harmonia preconcebida para além da barreira do seu jardim privado. Nós certamente não encontraremos muitos encarregados da caça com interesse nisso, e sim entretidos com suas ambições. Esse é o principal motivo para as pessoas com "consciência ecológica" servirem como alerta para todos nós. Esta cada vez mais notória ausência do jardineiro é o que se chama de "desregulamentação"."

Zygmunt Bauman - entrevista Revista Cult nº 138 

domingo, agosto 11, 2013

DOGMÁTICA EXCLUDENTE


Se por um lado a modernidade trouxe o progresso e o avanço da ciência, por outro também produziu uma crise de sentido que se estabelece, sobretudo com a chamada pós-modernidade (COSTA, 2008, p. 13). A crise da religiosidade moderna é uma oportunidade para se repensar a posição do Ser na sociedade em que vive, através do aniquilamento da metafísica clássica. As influências recebidas por Nietzsche e por Heidegger enfatizam o processo de debilamento do Ser, proporcionando uma nova interpretação da mensagem cristã, “a forma do cristianismo tradicional foi contestada por sua incapacidade de responder aos desafios da modernidade, e a solução foi encontrada numa secularização acomodática” (SOBRINO; WILFRED, 2005, p. 32).

Segundo o teólogo Hans Küng a Igreja cristã se encontra submersa em uma grave crise, “que é necessário descrever com objetividade e sem preconceitos antes de aplicar a terapia adequada. Crise que se plasma, entre outras coisas, em censura, absolutismo e estruturas autoritárias” (2011). Seus sintomas se refletem no esvaziamento cada vez maior das paróquias, fruto de uma mensagem dogmática e excludente. Em seu mais recente livro, Hans Küng (2012) afirma que a Igreja está doente e em estado terminal, e que para sair do estado de quase morte e sobreviver, se faz necessário deixar algumas práticas retrógadas, como por exemplo, o seu posicionamento eurocêntrico e muito menos arrogando-se detentora de uma única verdade.

É natural concluir que não existe mais uma relação entre espiritualidade e cultura no pensamento contemporâneo. O cristianismo contemporâneo não compreende o seu contexto histórico, a sua época, assim como a cultura em que está inserido. Atualmente existe uma crise de significados. O dualismo impregnado ainda na gênese do pensamento cristão proporcionou aos seus fiéis um medo apocalíptico. A religiosidade cristã, na contemporaneidade perdeu o foco e a centralidade no Cristo que fez de sua vida e missão uma práxis pelo amor e pela caridade. O cristianismo contemporâneo tornou-se um grande supermercado, em que seus produtos são orações, novenas, bênçãos, curas, milagres, receitas de felicidade e até da garantia do céu.

Enquanto o homem medievo buscava sentido para a sua existência em bases metafísicas e em seus sistemas simbólicos, como base de sustentação na sociedade em que vivia, com o advento da modernidade os sistemas simbólicos que lhe davam sustentação ruíram e com isso estabeleceu-se uma crise, através da crise das utopias, das ideologias, dos metarrelatos, dos paradigmas que lhes proporcionavam sentido. A mudança de paradigma estabelecida pela modernidade baseou-se na pessoa e não mais em questões metafísicas, a crise que se iniciou na modernidade com o fim da metafísica configurou uma crise sem precedentes da religião, consolidada através da revolução científica.

Bibliografia:

COSTA, Genion Bezerra da. A recepção da pós-modernidade: análise das diretrizes gerais da ação evangelizadora da igreja no Brasil de 1996 a 2006. Recife: UNICAP, 2008. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião), Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2008.

SOBRINO, Jon; WILFRED, Felix. Concilium: revista internacional de teologia. Petrópolis: Editora Vozes, n. 311, mar. 2005. 159 p.

KÜNG, Hans. A igreja tem salvação? o Paulo: Paulus, 2012. 295 p.

______. “Há um cisma na Igreja entre a cúpula hierárquica e as bases”. Disponível em:
cod_Canal=38&cod_noticia=18815>. 

domingo, julho 28, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VIII


Platão é acusado pelo trabalho de expulsão do poeta da Cidade. O poeta que ele tende a expulsar é Homero, antes, a poesia que é confrontada por ele é a homérica. Expulsa-a não porque se volte para os deuses e os mitos, mas porque a conduta divina não é imitavel, digamos assim, não favorece a justiça na Cidade. Os atos de traição, vingança, ódio, injustiça, inveja, etc. não devem ser imitados pelos homens. Não nos esqueçamos que Aristóteles, mais tarde, contudo não colidindo com seu mestre, dirá que o homem é um animal que imita. 

Platão não expulsa os deuses, antes, aponta para uma teologia que seja produto, resultante do trabalho de contemplação, do filósofo-rei, do Mundo das Ideias. Não são os deuses que devem ser expulsos, mas uma poesia que produzindo uma teologia mítica integra-se com a teologia política, propiciando aos homens políticos condutas injustas. Mas tal contemplação defendida por Platão pretende trabalhar, ainda, a partir da teologia mítica, da teologia politica e da teologia natural, conforme a matriz tradicional que deveria preservar. 

Contudo, Sócrates, a quem Platão concede a voz, é acusado de impiedade, isto é, de não respeitar os deuses e perverter os jovens, em outras palavras, não observar as tradições. Piedade é a observação das tradições da Cidade: dos deuses, dos antepassados e das leis. Quando, podemos pensar assim, ele apenas procura a preservação da Cidade, acatando as consequências de sua piedade, isto é, morrer segundo a determinação do julgamento feito pela Cidade, tomando do veneno da cicuta. Sócrates não é moderno, isto é, alguém que fomentando uma novidade torna-se ímpio; antes, Sócrates é pio, quer preservar a Cidade em sua tríade teológica fundamental: natural, política e mítica. O que o Sócrates de Platão faz é propor novas narrativas míticas, que legitimem uma ordem política mais justa, que esteja integrada ao cosmos, à physis/natureza. Mais ainda, que a natureza e suas paixões, a ordem política e os deuses estejam todos sob a justa, bela, boa e verdadeira ideia.

Quando falamos de tradição devemos lembrar da Ilíada e da Odisseia. A Ilíada nos fala de uma parte da guerra travada entre os aqueus, a quem os romanos nos ensinaram a chamar de gregos, e os troianos, os habitantes da Cidade de Illia, aquela de muros intransponíveis, posto terem sidos feitos por Poseidon. Tal guerra é motivada pelo condução (forçada ou voluntária) de Helena, esposa do basileus de Esparta Menelau, para Tróia ou Illia, por Paris ou Alexandre, filho do basileu Príamo. A Ilíada narra prioritariamente a Aquiles, o herói aqueu, mas nos concede a possibilidade de conhecermos o mundo antigo e parte de sua cultura. O poema já parte do meio da guerra e não chega ao fim dela, mas à morte do herói que jaz em glória, eternizando o nome. 

O poema de Eurípedes, Ifigénia em Aulis, nos permite saber que os exércitos aqueus se reuniram na Grécia, mas a ausência de ventos os impediu de se dirigirem à Tróia, localizada no que hoje chamamos de Turquia. O basileus que organizara a expedição consultou os oráculos a fim de saber o que seria necessário para aplacar os deuses e possibilitar a travessia. Era necessário o sacrifício de sua filha Ifigénia aos deuses. Ifigénia foi trazida ao acampamento dos aqueus sob a falsa notícia de que iria se casar com Aquiles, mas foi surpreendida ao saber que seria morta pelo pai. Conta o mito que ela foi sacrificada aos deuses que se agradaram do holocausto, chamemos assim, fazendo retornar os ventos, possibilitando a continuação do movimento bélico contra Tróia.

Os sacrifícios faziam parte da cultura mediterrânea, mas de maneira diferente para diferentes Cidades. O mito da criação do mundo, do cosmos grego está envolto pela origem a partir do derramamento de sangue. Sem sangue não há criação, a origem é cruenta. Diferente é o mito da criação do mundo por parte dos israelitas. Para eles o mundo é obra da fala dos Helohym. No princípio Helohym disseram...e houve. O sacrifício sangrento ocorre após aquilo que os cristãos vão chamar de pecado, e não como obra criadora. O sangue é um artifício apaziguador e não fundador.

Retornando à épica homérica, a Odisseia nos narra o retorno do herói Ulisses à sua terra Ítaca. Após vencerem as guerra e de posse dos despojos e dos escravos e escravas (como nos conta o poema As Troianas de Eurípedes), aqueles guerreiros gregos retornarão às suas Cidades. Ulisses tem seu retorno narrado na épica Odisseia. O herói astuto deve passar por inúmeros desafios, dentre eles ir ao Ades e se encontrar com Aquiles. Também se encontrará na terra dos Ciclopes, os monstros de um olho só e confrontará a Polifemo, o guardador de ovelhas. Se a civilização era o complexo geográfico e cultural, digamos, tradicional definido pelas Cidades gregas, os estrangeiros eram os Troianos, com deuses similares, mas com tradições distintas e os bárbaros eram os Ciclopes, monstros que não viviam em cidades, não conheciam o vinho, ou seja, toda uma ordem de produção que exigia o controle do tempo e das estações. Ulisses, para escapar dos monstros bárbaros, diz-se chamar “ninguém” e assim inverte a lógica civilizado-bárbaro, confundindo aquele que deve ao fim perder a visão de um olho só.

Se na Ilíada os aqueus são os vencedores de uma guerra épica que expõe frente a frente o melhor (aristos) filho da Grécia, Aquiles e o melhor filho de Troia, Heitor, demonstrando a supremacia do herói grego sobre o melhor guerreiro dentre os estrangeiros (xenos), na Odisseia a astúcia intelectual de Ulisses é o recurso heroico que possibilitará aquele herói retornar a Ítaca e rever sua esposa Penélope. Assim, estas duas obras poéticas de Homero salientam a supremacia grega na arte bélica e na astúcia, ou a capacidade de prevalecer pelo uso do intelecto. O homem grego é, então, o melhor homem, segundo esta teologia mítica de Homero compilada por volta do século VII a.C.

No século I a.C. Virgílio escreve sua épica Eneida como uma obra que visa ser um narrativa mítica segundo a tradição homérica, encomendado pelo imperador romano Augustus. A Eneida narra os feitos heroicos de Enéas, herói fundador do que virá ser Roma e toma como matriz poética a Odisseia e a Ilíada, sintetizando num único volume estas duas obras. Enéas seria filho de Anquises com Afrodite e sobrinho de Príamo, rei de Tróia. O herói sobrevive à queda da Cidade, fugindo dali com seu pai nas costas, carregando uma estátua do deus troiano, juntamente com sua esposa Creusa e seu filho Ascânio. Seu epíteto (neste caso é o que é acrescido ao nome e que o qualifica) será repetidamente de “o piedoso”, marcado pela imagem de quem guarda os deuses, os antepassados e a lei da Cidade.

Enquanto o herói romano tem como qualificador a piedade, os gregos da Eneida são marcados pela impiedade. A tomada de Tróia é marcada pela vileza de Ulisses que engana os homens com um presente aos deuses, um Cavalo oco de madeira, acentuando a mentira. A queda de Tróia é retratada pela crueldade dos guerreiros aqueus que violando as leis de guerra matam a Príamo, rei idoso que abraça a imagem marmórea do deus, matam-no ali mesmo em sua súplica. A impiedade grega é contraposta a pia imagem do herói romano. Esta é a grande inversão da narrativa de Virgílio a partir da matriz narrativa de Homero. Enquanto Homero narra a supremacia bélica e da astúcia heroica dos vitoriosos gregos, a narrativa de Virgílio acentua a supremacia romana a partir da imagem da piedade. 

Apreendido este deslocamento narrativo desde a épica homérica, aquela que se funda na glória (kleos) do herói grego como o melhor (aristos) na guerra e na astúcia, até a épica virgiliana que se funda na piedade romana como guarda dos deuses, dos antepassados e da tradição, podemos perceber a produção de uma teologia mítica que estará imbricada numa teologia política e numa teologia natural que legitimará o poder da Cidade Eterna. Este deslocamento permitirá ao mesmo tempo deslocar o centro epistemológico da narrativa, como manter intacto o edifício narrativo. A épica homérica é, então, reproduzida por Virgílio em detalhes que vão desde a guerra de Tróia – no caso o fim da guerra e a suposta vitória dos aqueus – até a viagem de Enéas até a Itália – num paralelo sensível com a viagem de Ulisses até Ítaca. O herói romano também conhece os estrangeiros e os bárbaros, aqueles com quem se une e com quem digladia, e também aqueles que devem ser eliminados, destruídos. Também o herói desce ao Ades e vence o esquecimento da morte.

Este movimento circular com o simultâneo deslocamento do centro epistemológico também garantem aos romanos uma legitimação da narrativa de sua supremacia posterior sobre os gregos. Em outras palavras, é o retorno do oprimido como vencedor sobre o opressor. Retorno este legitimado não mais apenas sobre o ser um melhor guerreiro ou um homem mais astuto, ou seja, um homem melhor, mas legitimado pela piedade, isto é, a tradição. Roma é a Cidade cujo fundamento é a piedade e a partir da piedade ergue-se um edifício ordenado pelo que é mais sagrado: os deuses, os antepassados e as leis.

Aos hoplitas e às falanges gregas, que conhecemos, após os heróis gregos e fundadores da ekklesias bélicas, Roma funde uma forte hierarquia social de matriz militar com uma indiferenciação das centúrias romanas. Contudo, a questão que nos importa salientar no momento é que Roma é a vingança dos deuses de Tróia contra os ímpios aqueus que ultrajaram as leis da Cidade antiga. Como um Édipo Rei que ultrajando as leis de Corinto traz sobre si e sobre a Cidade a desordem, mesmo vociferando contra as tradições conhece um fim trágico, também os gregos conhecem a espada e a soberania romana. Mas se os gregos perdem a liberdade para os piedosos romanos, os romanos mantém intacto a ordem tradicional que herdaram da Grécia. A história conhece, então, menos um movimento progressivo e mais uma circularidade.

Roma deverá guardar a tradição, pois é a partir dela que sua teologia mítica operará. Roma não poderá esquecer de absorver o legado daqueles que triunfaram no passado, mas criticará o tendão de Aquiles que os fez perecer no tempo. Enéas levará até a Itália o deus que trouxe desde Illia, assim como o fogo que não pode apagar, até que estes encontrem o seu lar, a propriedade dos romanos. Roma herda de Tróia a memória da impiedade dos aqueus e herda dos helenos o ordenamento racional.

domingo, julho 21, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VII



No ponto em que estamos desta nossa leitura perspectivada, podemos nos deixar levar por inúmeras tentações. Podemos ser levados pela tentação de uma crença progressista da História. Também podemos ser levados pela tentação de uma crença numa lógica dialética da História. Estas duas vias nos fazem acreditar num movimento determinista e determinado para a história, como se um Espírito a conduzisse transmutando-a em História.Um a priori e um fortiori conduzindo os fatos. Por uma terceira via, podemos ser levados pela tentação de uma crença em ciclos históricos que surgem, conhecem sua maturidade e se esgotam, com se fossem acontecimentos autóctones e sem legado. Estas três tentações se nos pode ocorrer quando pretendemos nos mover desde o Peloponeso até a Itália.



A crença progressista, tanto da história quanto da ciência, apresenta-nos o mito de que a humanidade acumula conhecimento, antes, o conhecimento se dá por acumulação. A ciência é um ser guloso e obeso como um buraco negro. Ontem sabemos menos do que hoje e amanhã saberemos ainda mais. A ideia aqui presente é que não há perda e nem transformação do conhecimento ao longo da história. Some-se a isto o mito, aquele que poderemos ter uma clareza maior quando passarmos pelo neoplatonismo e pelo gnosticismo cristão, de que a verdade é como se uma cebola tivesse um núcleo. Progressivamente vamos descascando a cebola, isto é, retirando película a película que cobriria o núcleo, até que este fosse plenamente descoberto. Neste sentido, o progresso científico e a descoberta científica são os dois lados de uma mesma moeda. Assim, a teologia mítica, a teologia política e a teologia natural possuem um núcleo metafísico duro, um fundamento último que num processo metodológico racional será desvelado e revelará a verdade clara e distinta. Como diria o apóstolo Paulo: hoje sabemos em parte, mas amanhã veremos face a face. Em outras palavras, a verdade está oculta, velada, mas a razão humana progressivamente irá, por uma metodologia científica, desvela-la, retirar-lhe o véu. Podemos, assim, nos tranquilizar, pois o fim, que já sabemos de antemão,e apesar dos problemas no transcurso há a garantia, será alcançado e nos levará a uma plena felicidade. É o legado grego-cristão das palavras de Jesus: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Mas as cebolas não têm núcleo, apenas finas lâminas.



A lógica dialética da História também parte da crença, porque não dizer religiosa, de que há um processo histórico inexorável movido pelo Espírito. Joaquim de Fiori (1132-1202), místico cristão do séculoXII inspirou, em certo sentido, não apenas Hegel como, ainda que indiretamente, Marx. Joaquim foi Abade em Fiori e propôs que a história da humanidade se processaria em três eras: a do Pai, de acordo com o Velho Testamento, de um Deus poderoso, vingador e temível; a do Filho, de acordo com o Novo Testamento, de um Deus amoroso e revelado entre nós; a do Espírito, com a fusão do indivíduo e da ordem. A sociologia positivista de Auguste Comte também parece ser herdeira deste pensamento religioso, ou, é uma expressão secularizada da mítica de Joaquim, que encontra na era da razão um mundo sem a superstição religiosa. Há uma forte crença escatológica nesta elaboração, isto é, uma racionalidade da História que a faz culminar num evento último. Evento este que faz dissipar toda ordem tradicional instituída em prol de uma ordem mais justa. Desta escatologia hegeliana podemos ter dois caminhos para a História: se apostarmos num Espírito diluído entre todos os homens, como mônadas, podemos pensar no individualismo anarquista,quando aliado à supressão da propriedade privada; se apostarmos num Espírito manifesto no Estado, o lugar irradiador do poder, então teremos outros dois caminhos: o comunitarismo com supressão da propriedade privada, pela via marxista, ou o nacional socialismo, um tipo de Estado marcado pelo mito de origem, dos deuses.


Até aqui pensamos seguindo uma imagem do tempo linear, do tipo agostiniano, isto é, neoplatonismo cristianizado. O tempo como sucessão de instantes homogêneos, onde o presente é um instante entre o passado e o futuro. Cada instante de tempo é absolutamente idêntico ao anterior e ao próximo, mas é marcado pela História. Não é assim, porém, no pensamento antigo antes do cristianismo. Na Grécia e mesmo em Roma o tempo era pensado ciclicamente. Platão e Tulcidides pensam os regimes políticos passando da Oligarquia, Aristocracia, Democracia e Tirania e retornando, numa sucessão cíclica. Platão, na República, pensará um modo de sair deste movimento, posto que ele está olhando para as estrelas, mas busca além delas um Mundo não sujeito à corrupção. Filho desta concepção antiga são as crenças em ordens que respeitem ciclos bem definidos de surgimento, crescimento, amadurecimento, declínio e morte. Conforme dissemos acima, parece que estes ciclos surgem do nada e ao nada retornam, não sendo tributários de nenhuma tradição anterior e nem deixando qualquer legado posterior. Como se seres alienígenas tivessem deixado na Ilha de Pascoa crianças que conseguiram sobreviver e inventaram uma maneira de viverem em comum, e ao fim de um tempo aquela civilização tivesse deixado de existir. Não é assim que ocorre.

Embora estes crenças estejam bem arraigadas em nosso senso comum, podemos ver suas limitações ao exigirem de nós que nos abstenhamos de questionar a capacidade de explicação e de previsão, antes, a sua baixa aderência ao dado empírico e a impossibilidade de prever fatos futuros. Ao exigirem de nós fundamentos inquestionáveis. Precisamos, então, de um modelo que incorpore a imprevisibilidade de futuro, mas que nos permita perceber o eco do passado no presente. Mas do que a imprevisibilidade de futuro e eco de passado, o modelo deve nos fazer perceber que a história não se dá por necessidade, mas por linhas de força e arranjos. Podemos, então, tomar algumas metáforas e perceber como elas nos permitem compreendera história em seu dinamismo, em que o passado e o futuro sejam-nos como matérias-primas na construção de mundo, mas que esta construção de mundo não está subordinada a qualquer Espírito, princípio ou eterno retorno.

Martin Heidegger em seu texto “O que é uma obra de arte” nos diz (aqui apenas buscamos uma paráfrase) que na passagem do grego para o latim perdeu-se muita coisa. Há muita tensões nestas palavras, mas antes de aborda-las, tomemos uma primeira metáfora do próprio Heidegger. Usando a metáfora do círculo, nos diz o filósofo que ao buscarmos o conhecimento sobre algo não o fazemos arbitrariamente, mas já interessados por um interesse que não nos pertence, não é nosso, não o produzimos. Interesse que para ele nos remete ao “meter-se em meio à coisa”. Interessamo-nos por algo, passamos a conhece-lo, transformamos o objeto conhecido e nos transformamos, e retomamos ao ponto do interesse, fechando o círculo.

Mas esta metáfora poderia nos sugerir que em tal círculo haja um centro, um lugar fixo e que fixe o movimento a partir dele, tal qual para os antigos o Universo girava em círculos ao redor de um ponto fixado: a Terra. Nesta caso, não mais a Terra, mas o sujeito. Mas aqui é que devemos tomar a segunda metáfora, aquela apresentada por Jacques Derrida. O filósofo francês nos fala que este círculo é como uma elipse, isto é, quando completamos o círculo o centro sofre um deslocamento, de tal modo que não retornamos ao ponto inicial. Não há fixidez ou fixação do sujeito do conhecimento. 

Mas para percebemos as consequências desta segunda metáfora sobre a primeira, devemos tomar uma terceira, e neste caso antecessora das duas primeiras, mas que nos auxilia no entendimento da ampliação que resulta destas. Nicolau de Cusa, cardeal da Igreja no século XV escreveu a “Douta ignorância”, em que defende a ausência de centro fixo no Universo. A defesa que ele faz desta tese é simplesmente radical. Hoje se quer damos conta da radicalidade daquele pensamento, já que para nós o Universo é descentrado. Diz-nos o clérigo que para traçarmos uma circunferência precisamos de um ponto central e de um raio, assim a circunferência é a curva em que todos seus pontos estão equidistantes do centro a uma distância igual ao raio adotado. Então, acrescenta, que se estivermos pensando numa circunferência de raio infinito, todos os pontos estarão a uma distância infinita do centro, e mais ainda, o raio será tão infinito quanto o diâmetro, e mais ainda, que qualquer lugar neste Universo infinito estará a uma distância infinita da circunferência que o inscreveria. Portanto, qualquer lugar deste Universo é o centro do Universo, logo não há centro de um Universo infinito. Nicolau não apenas desfaz a ideia de centro do Universo, aquele que era ocupado pela Terra, como desfaz da ideia de um Universo finito e fechado, como queriam os gregos, os romanos e os cristãos.

A consequência, então, para nós é que a história não teria um centro sobre o qual giraríamos, mesmo que este centro fosse passível de deslocamento. Isto não significa que não possamos adotar um centro, mas este não é universal, válido sempre e para qualquer um. O centro que adotaremos é um centro que permite-nos dar sentido a nossa narrativa e permite-nos apenas trazer certa coerência, mas em momento algum determina a verdade histórica. Interessamo-nos pelo movimento no tempo e que chamamos de história, mas este interesse reclama de nós um conjunto de ferramentas e instrumentos de análise, isto é, referências, também suscita objetivos e métodos. Este interesse põe em questão s ferramentas, os instrumentos, os objetivos e os métodos, fazendo deslocar o centro adotado e o próprio objeto e o pesquisador.

Em termos de uma possibilidade histórica, diríamos que os romanos fazem uma leitura dos gregos, segundo seu próprio centro, transformam os gregos segundo seus interesses e recolocam-nos um grego latinizado. É neste sentido que lemos a frase parafraseada de Heidegger: a passagem do grego para o latim há perdas. A leitura que Cícero, Virgílio e outros fazem dos gregos, não é grego. Assim como a leitura que os pais da Igreja cristã fazem dos escritos do Velho Testamento, do Novo Testamento, dos gregos, dos romanos e dos neoplatônicos, não pertence àqueles escritos. O que nos parece é que o pensamento Histórico determinista, quer segundo a crença no Progresso, quer na Luta de Classes, quer na circularidade, ou na degenerescência trágica, ou outro método que pretende o controle e a previsibilidade do futuro, determina uma dada epistemologia. Epistemologia esta que se funda num dado último e incorruptível, numa verdade. O que pretendemos é ver na história esta possibilidade criativa e incontrolável.

Feita esta passagem rápida podemos voltar aos nossos antigos. Podemos fazer uma leitura que aproxima e distancia os gregos e os romanos. Podemos começar com Homero e Virgílio, depois Platão/Aristóteles e Cícero, e por fim Catulo.

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

domingo, julho 14, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VI


Aristóteles em sua arte poética nos diz que o homem é um animal que imita. Talvez nunca consigamos sair deste círculo desvirtuoso. Quando Jesus, reconhecido pelos seus primeiros amigos como Cristo, isto é, Messias, disse, “se lhe derem numa das faces, ofereça a outra”, estava apontando para a quebra do ato mimético, da violência mimética. Em lugar de proceder tal qual o agressor retribuindo a violência com a violência, e com isto perpetuando-a, Jesus, o Cristo reconhecido, diz que da violência somente se sai pela não violência. Ora, estava ele criticando abertamente a lei de Moisés, para quem “olho por olho” era a regra referida. Mas esta regra não o era apenas no interior das fronteiras hebraicas, mas era regra geral dos povos que hoje imitamos: Egípcios, Gregos, Romanos, Persas, etc. Nossa teologia política, mutatis mutantis, nossa filosofia política ainda segue a regra mimética da violência, ainda que tenhamos dito que não.

O modelo político grego tem intrigado muitos estudiosos por ser, aparentemente único na história da humanidade. A democracia, o poder de muitos como nos falam os antigos, contudo não é uma descoberta grega, mas está presente, por exemplo, nos povos nórdicos, os chamados vikings. Também é possível pensarmos em povos sem Estado em que os membros destas populações organizam a vida em sociedade sem a existência de um poder central, como foi o caso de povos aborígenes no Brasil, como nos conta Pierre Clastres (A sociedade contra o Estado). Porque então o modelo grego e romano nos intriga? Não saberia responder, ainda que tenha colocado a questão. Mas é possível que a questão mimética, traduzida como tradição, possa ser uma chave.

Lembremos que Aristóteles relata seu mito político, no qual a Polis, a Cidade é quando um “oikos” (uma casa) se junta a outro “oikos”. Qual a questão ai? Cada “oikos” tem seu poder fundado no poder do “despotes”, ou, do pater família, ou ainda, do “basileus”, um rei em sua casa. Se no “oikos”, na dimensão privada de sua casa o pater família pode exercer seu poder despótico como “basileus”, ao encontrar-se com outros “basileus” ele se encontra com outros iguais, portanto, pode e deve ser deles amigo, exercer a “philia”. A “Polis” é quando um “oikos” se junta a outro “oikos” e o “basileus” não pode exercer na cidade o mesmo poder que ele tem em casa. No “oikos” o “basileus” exerce o poder de “despotes”, isto é, o poder privado baseado em uma hierarquia que vai desde si, passando pela esposa(s), filhos, chegando aos escravos e animais e coisas. Mas, ao juntar seu “oikos” a outro “oikos” deve negociar seu poder com outros “basileus” que igualmente tem o mesmo poder de “despotes”, e o deve como amigo, “philia”. A “philia” somente existe entre “despotes”, quer na categoria de oligarcas, quer na de aristocratas. Este poder que será exercido entre amigos será o poder na e da Polis, o poder público. Desta maneira temos a separação grega entre o privado (poder despótico) e o poder público (poder entre “basileus” amigos). As regras de convivência entre os “oikos” e os “basileus” devem ser discutidas em assembleias, as “ekklésias”.

Abrindo um breve parêntesis, devemos salientar a singularidade de um “oikos”. Um “oikos” mais do que uma casa e sua ordem hierárquica, era um espaço sagrado. Ao centro do “oikos” havia o lar. O lar era um espaço de devoção no qual se encontravam as estátuas dos deuses domésticos, dos antepassados e do fogo sagrado, o qual nunca poderia ser apagado. O “oikos” era a propriedade de uma família, era próprio de uma família. A propriedade da terra estava imbricada com a família, e esta com o lar, os antepassados e os deuses, assim como o fogo sagrado. A totalidade desta ordem privada e doméstica que aqui esboçamos era chamada de “oikonomia”, ou, em nossa linguagem, economia ou ainda administração. A economia era essa administração das coisas domésticas segundo uma dada hierarquia centrada por em espaço sagrado do lar, determinando certa propriedade: isto era para os antigos a “oikonomia”. Juntar um “oikos” a outro “oikos” era encontrar certa identidade de tradições, de língua, de deuses e de antepassados. A Polis de Atenas encontrou na deusa-macho Palas Atenas e em Zeus, o deus do Olimpo, esta síntese dos lares. Fechamos parêntesis.

“Ekklésia” que será traduzida para o termo latino Igreja. A “ekklésia” não é o espaço físico, mas a dimensão de encontro entre “basileus”. O espaço físico era a “ágora”, a praça, o lugar onde os homens se encontravam e debatiam seus problemas. Os homens saiam de seus “oikos” nos quais exerciam seu poder despótico e iam para a “ágora” para se encontrarem como “ekklésia”. Por isso a “ekklésia” trás o sentido de um sair para fora, um sair do “oikos” para um encontro na “ágora”, do espaço privado para o público. Este encontro com o respectivo debate público é a “ekklésia”. Quem poderia participar da “ekklésia”? Esta é uma pergunta pertinente e sua resposta nos leva para um tempo anterior, pois somente os homens que tivessem as armas e as vestimentas de guerra e pudessem usa-las, podiam participar da “ekklésia”.

Um dos momentos marcantes do poema homérico, Ilíada, é o encontro belicoso entre Aquiles e Heitor. O que se passa ali? Inúmeras coisas poderiam se destacar, mas salientemos apenas duas: primeiro, que a glória de um homem, o que o faria ser lembrado para além de sua existência física como um homem digno de ser lembrado em imitado, a glória (“kléos”) se obtinha na batalha. Morrer na guerra era morrer em “kléos” e com isso ser honrado pela memória. Se a biografia de um homem estava marcada pela biografia de seus antepassados e atrelada à da sua Polis, a “kléos” lhe daria um nome único, uma marca individual. O segundo ponto que podemos destacar está em que são dois homens lutando em nome de duas formas, estruturas distintas de Estado. Heitor luta por Tróia, a Cidade de muros inexpugnáveis, pois fora obra do próprio Poseidon, deus dos mares, Aquiles lutava pelos aqueus, pelos “basileus” reunidos em torno de Menelau. Aquiles, Ulisses, Menelau, Agamenon, etc. são “basileus” gregos que se reúnem em “ekklésia” e deliberam partir em guerra contra a Ilia. Dois homens se encontram e, em certo sentido, definem a sorte da guerra. O melhor dos aqueus, Aquiles, e o melhor de Tróia, Heitor. Ainda que Aquiles tenha profanado o templo de Apolo, é em favor dos aqueus que os deuses se voltam e conferem a vitória. Dois outros aspectos a salientar: primeiro, que nenhum “basileu” era obrigado a ir à guerra, mas era livre para ir e sair, mesmo tendo participado da “ekklésia” na qual se deliberou a guerra; segundo, os despojos de guerra eram repartidos entre todos os “basileus”, segundo regras de guerra determinadas por tradição ou por “ekklésia”.

Encontramo-nos com a proto-democracia grega, quando “basileus” se encontravam em “ekklésia” para definir a guerra e a paz, e depois da guerra, para determinar a partilha dos despojos. Como eram homens em igual posição social, um não podia se sobressair sobre o outro, a palavra era franqueada a qualquer um e as discussões eram livres e igualitárias. Mas, dizem os pesquisadores, há um passo a ser dado. A transformação da guerra. Os helenos desenvolveram uma nova tática de guerra: os hoplitas, mais ainda, a invenção da guerra em falanges com os hoplitas. Enquanto da era clássica os Heitores enfrentavam os Aquiles em busca de glória individual, na antiguidade grega estes foram substituídos por soldados marchando lado-a-lado, ombro-a-ombro, empunhando lanças, espadas, escudos, couraças e capacetes. Um bloco unido e homogêneo de soldados. 

A batalha no estrito de Termópilas (filme “Os 300 de Esparta”), retrata esta mudança tática da guerra helênica. Aquela narrativa trata de mostrar a superioridade da falanges e dos hoplitas sobre as formas tradicionais de guerra. Blocos compactos de soldados coesos e indiferenciados, comprometidos antes com o todo do que com sua própria glória. As falanges com poucos homens racionais e livres, contra os milhares de servos de um tirano. Ainda hoje somos tributadores do mito da igualdade e da racionalidade bélica. Se da “ekklésia” clássica a democracia herdou o direito igual à palavra a fim de se definir as regras da guerra, da era antiga os gregos herdaram a posição igual de todos na “ekklésia”. A “ekklésia” é o encontro de homens livres que tem o mesmo direito à palavra (isonomia) e mesma posição diante dos parceiros (isegoria), na qual se debatem as normas de convívio comum na Polis (público), os investimentos bélicos e monumentais na Polis, a guerra, os impostos, os despojos, e tudo que concerne à vida pública, ao domínio da Polis, da política.

A medida que se percebeu a eficácia das falanges e dos hoplitas, que lutavam não apenas por suas vidas e por sua glória individual, mas pela falange, pelo companheiro ao lado, à frente e atrás, as Polis arregimentaram outros homens, gregos, mas não ricos e nem nobres, antes, gregos pobres, os “demos”. Assim, homens ricos, nobres e pobres lutavam lado-a-lado nas falanges como hoplitas. Todos fazendo jus aos despojos de guerra, todos podendo participar das assembleias, todos podendo falar e estando diante de cada um. A isonomia e a isegoria foi estendida, gerando o conceito de democracia, o poder de muitos. A democracia é filha da guerra. A democracia é um problema para Platão, que vê nela uma degradação da Polis, pois esta deve ser governada por Um, o filósofo-rei. A democracia é um problema para Aristóteles, que hierarquiza os homens definindo cidadania ao ricos e nobres e subcidadania aos pobres.

Mas se a guerra pode ser uma chave de compreensão do Estado grego, as hierarquias sociais não podem ser entendidas apenas por razões econômicas, como nos informam alguns historiadores. Se uma Polis grega tinha homens ricos e pobres, também tinha cidadãos e “xenos” (estrangeiros, homens de outras Polis gregas), assim como bárbaros (escravos em linhas gerais). Um estrangeiro podia ser um homem rico, ou mesmo um homem virtuoso. Contudo, um “xenos” nunca seria um cidadão. Assim, a cidadania era definida por dois aspectos: uma hierarquia que partia da riqueza/nobreza, passava pelo pobre, até o escravo; uma hierarquia que partia do local de nascimento do homem e seus antepassados, passava pelo “xenos” até o bárbaro. Uma análise simplista a partir da ótica puramente econômica não explica as hierarquias nas cidades gregas. Antes devemos separar o privado do público, no espaço público devemos tomar a questão econômica e a ligada às “gens”, à pertença de um indivíduo a uma cidade grega ou não.Mas a “gens” não era definida apenas pelo nascimento, mas por uma cultura que passava pela língua, pelos deuses, pelos antepassados, pela tradição compartilhada.

Para o grego havia dois tipos de guerra. A dualidade era um método epistemológico para o conhecimento, e isto vemos presente na dialética platônica e em Aristóteles, também. Um grego poderia fazer guerra com outro grego, com um xenos. Tais confrontos não visavam a destruição do outro, pois este seu inimigo era seu amigo. Aquele outro grego de outra Polis era um igual, com mesma língua, tradições e panteão. Tais confrontos visavam mostrar quem era mais forte, hábil e merecedor de “kléos”. As Olimpíadas gregas traduziam este sentido de ser mais forte, ir mais longe e mais rápido. As Olimpíadas traduziam este ideal de teoria, de contemplação dos deuses nos heróis olímpicos.Um grego poderia fazer guerra com um não grego, um bárbaro. Um bárbaro não era um igual, mas um inferior, ao não possuir a razão, não falar a língua grega. O bárbaro de então se assemelha ao aborígene americano no século XVI até o século XXI, e suas terra com as terras das Américas. 

Nos escritos gregos clássicos e antigos que tratam da questão das fronteiras, está claro o tratamento que dão a estas quando seus vizinhos são outros gregos (“xenos”) ou são bárbaros. Quando as terras de um grego tem como lindeiro outro grego, as descrições de fronteiras são pormenorizado, detalhado com máxima precisão. Quando as terras de um grego tem como lindeiro um bárbaro, não há descrição alguma, como se suas terras terminassem em abismo, como se elas se abrissem ao infinito desconhecido. A visão cósmica de um grego também acompanha este modelo epistêmico: no centro do Cosmos a Terra, depois as sete esferas fixas, sendo a última a esfera das estrelas fixas, após ela o Motor Imóvel, e depois nada... O mundo grego é um Universo fechado, isto não quer dizer que seja limitado, apenas que tudo que a ele pertence e é conhecido e submetido a seu poder, isto existe; tudo mais não existe, até que um grego vá até lá.

Esta é a narrativa homérica da Odisséia. Ulisses deixa Tróia em direção a seu lar, Ítaca e sua mulher Penélope. Mas os deuses o leva a lugares desconhecidos e ao encontro de bárbaros de um olho só, que não são racionais, estando diante do herói grego como alguém que se pode dispor, pode-se matar, roubar, enganar, sem que com isto fira qualquer ética ou moral. É exatamente esta relação com um mundo fechado em suas razões tradicionais que Jesus o Cristo se voltou contra e para além do privado e do público, separou o violento mimético, do que “ágape” aquele que está próximo.

PARTE VI do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.