sexta-feira, abril 19, 2013

O FUNDAMENTO DA SOBERANIA




O soberano é aquele que pode decretar o ‘estado de exceção’. Esta é a proposição de Carl Schmitt em sua Teologia Política. O filósofo italiano Giorgio Agamben tomará esta tese Schmittiana como referencia e escreverá seu “Estado de Exceção”, buscando pensar sobre a soberania. Seu ponto de partida será a Alemanha pós Primeira Guerra Mundial e a ascensão do Nacional Socialismo, o Nazismo. Dir-nos-á três coisas em seu texto: primeiro, que o ‘estado de exceção’ era uma cláusula constitucional da Alemanha de época, segundo, que Hitler chegou ao poder por vias constitucionais e que, portanto, a Alemanha Nazista não foi uma ruptura com o Estado de Direito, terceiro, que todas as atrocidades, a violência contra minorias, a guerra s desenvolveu sob o direito do soberano em decretar o ‘estado de exceção’.

O ‘estado de exceção’ é um dispositivo constitucional que confere ao poder soberano o direito de suspender a ordem legal pelo tempo que julgar preciso, quando o Estado, a nação, a sociedade estiverem em grande perigo. É possível, diríamos nós, que o ‘estado de exceção’ seja um aprimoramento da ditadura romana, quando Roma se sentia ameaçada, elegia um ditador com plenos poderes para a guerra. Mas a questão é que durante doze anos Hitler governou a Alemanha, conduzindo-a a um experimento social ainda não igualado em sua crueldade e horrores, sem que tivesse violado qualquer direito que lhe fora outorgado pela Alemanha da época. Este regime totalitário se instalou no Ocidente sem revogar a constituição, mas aplicando-a um dispositivo que ela mesma constituiu em si. O soberano é aquele que pode fazer uso do ‘estado de exceção’.

Agamben nos dirá que o ‘estado de exceção’ continua em vigor ainda hoje nos Estados democráticos e de direito, e que complementamos que este experimento político da primeira metade do século XX agora toma feições mais cotidianas, banais – retomando um dizer de Arendt. Tomando como referência Guantanamo, o filósofo nos aponta para o fato que os prisioneiros ali instalados estão sob o regime da suspensão das leis nacionais (pois Guantanamo não é parte nem de Cuba e nem dos EUA) e também estão excluídos do direito internacional. O mais importante, que devemos frisar, que ‘estado de exceção’ não faz referencia a uma momento e local de exceção, como se Guantanamo fosse uma exclusão da normalidade mundial. O ‘estado de exceção’ refere-se a um estado previsto na norma constitucional que permite o Estado suspender no espaço e no tempo a própria constituição, quando o soberano julgar preciso. O ‘estado de exceção’ é um dispositivo constitucional e não uma ocorrência excepcional.

Podemos nos voltar como faz Agamben, ao ‘estado de exceção’ como possibilidade do soberano e, assim, nos perguntar sobre a soberania. Retomar o caminho por ele traçado e perguntar sobre a vacuidade da soberania, pois esta se fundaria na deslegitimação temporária, na suspensão da legitimidade constitucional. Ressaltar o caminho secular do poder, que busca um substituto para o Soberano, isto é, Deus. Ressaltar que a secularização da soberania passa por alguma teologia negativa, por uma dada mística cuja soberania se funda numa ausência, num silêncio. Hobbes, Locke e Rousseau procurarão secularizar o Estado, instituindo alguma forma de soberania que será traduzida em um contrato social. Marx instituirá o poder soberano a partir da parte excluída: a classe dominada. Mas todas estas formas de soberanias secularizadas encontrarão em seus fundamentos o ‘estado de exceção’.

O soberano exerce sua soberania quando diante de um estado que coloca em perigo o Estado, a nação, a sociedade, já o dissemos. Este é um exercício, digamos assim, solitário do soberano, mas não podemos nos atrever a dizer que seja um juízo subjetivo exercido por este ou por aquele homem/mulher que estão soberanos, mas uma prerrogativa do poder soberano. Uma suspensão temporária da legalidade visando afastar o perigo, o risco. Uma prerrogativa do poder soberano - tomando Rousseau como exemplo – que no exercício da vontade geral, pode usar da extrema violência para por fim aos movimentos da população que colocam em risco a ordem institucional. É a prerrogativa de um policial que num eclipsamento legal e diante de atos que ponham em risco a sociedade e o Estado, se faz ele mesmo policial, juiz e lei. É a prerrogativa do torturador, que em nome do bem-estar de muitos torturam um terrorista que tenha ativado uma arma de destruição em massa no centro de uma metrópole, diante da vacuidade legal, ética e pericial. 

O ‘estado de exceção’ também é aquele exercido pelo Estado em nome do bem-estar em regiões fronteiriças da cidade. Nos limites fronteiriços entre legalidade e ilegalidade, entre civilização e barbárie. Tomando uma nomenclatura de passagem, poderíamos dizer que entre o espaço do cidadão e o não espaço do bárbaro, há um liame ocupado pelo ‘xeno’, o estrangeiro que vive na cidade, que não estando sujeito às leis de sua própria Cidade, pode não encontrar na outra Cidade guarida legal. Aqui falamos do estrangeiro que não é o ‘meteco’, este sendo o estrangeiro que vive e convive na cidade. Estamos falando de alguém que estando na Cidade não se beneficia das leis da cidade, do bem-estar da cidade; por outro lado não está no vazio da barbaridade. Este não é um de nós, mas também não é totalmente um deles.

Agamben vai se debruçar sobre este indivíduo que está abandonado, que ocupa o fio da navalha, que experimenta continuamente o ‘estado de exceção’. Noutro trabalho o filósofo italiano chamará este indivíduo de ‘homo sacer’. Nas cidades antigas os sacrifícios faziam parte dos ritos públicos e políticos. Agamenon sacrifica sua filha Ifigênia quando da Guerra de Tróia, visando que os deuses lhes fossem propício e lhes dessem ventos e mares para atravessarem o Mediterrâneo e vencerem o confronto na Ilia. No mito de Dionísio encontramos alguns exemplos de mães que sacrificaram seus próprios filhos. Podemos ainda multiplicar os exemplos, pois os sacrifícios ordenavam a cidade, não apenas em Jerusalém, como em Atenas e Roma também.

Mas não se sacrificavam arbitrariamente e nem sem a observância de um rito. Aquele a quem se sacrificaria era separado do mundo profano e passado para o mundo do sagrado, estava separado para o sagrado. Ao fazer tal passagem o indivíduo não mais estava sujeito às leis da Cidade, mas agora estava sob a jurisdição dos deuses, do sagrado. Contudo, conta-nos Agamben, se algo ocorresse e este indivíduo não fosse mais sacrificado, desta maneira, não mais sacrificável, se tornaria ‘homo sacer’, alguém que não estaria jamais sob a lei da Cidade e nem sob a jurisdição do sagrado. Diríamos que estaria como que cumprindo a pena de ostracismo, mas na Cidade, completamente desamparado da lei, abandonado. Um indivíduo de bando. Ser ‘homo sacer’ era ser morto sem com isso o assassino pudesse ser imputado como tal. O ‘homo sacer’ era um indivíduo em ‘estado de exceção’. Mais próximo de nós, podemos citar os judeus na Alemanha hitlerista.

O esforço de uma civilização que preza pela hospitalidade é produzir, reproduzir e tonar público narrativas que, tomando de perto ainda Agamben, desarticulem os dispositivos de produção de ‘homo sacer’, dispositivos de ‘estados de exceção’, e permitam a participação na dimensão pública aqueles que antes era estrangeiros. Numa sociedade secularizada que está dividida entre o sagrado e o profano, entre a vida privada e a pública, entre o nós e o eles, que toma o sacrifício, ainda, como metáfora ativa ainda mais por dela não darmos mais conta, Agamben vai buscar noutro movimento, oposto ao de ‘homo sacer’ e que pode inspirar a desarticulação dos ‘estados de exceção’, a ‘profanação’.

Profanar é colocar em uso comum aquilo que estava separado para um uso específico. Citamos dois exemplos do autor: primeiro, um gato que brinca com um novelo de lã; segundo, uma criança que brinca com um crucifixo como se fosse um avião. Em ambos os exemplos, o objeto foi utilizado sem a referencia a seu objetivo primário. No caso que estamos pensando, seria tratar o ‘xenos’ (segundo o apontamento que demos acima), não como ‘homo sacer’, mas produzindo novas narrativas que o aproxime, que nos permita uma ‘philia’ (uma amizade), uma proximidade amistosa. É profanar a xenofobia por meio de narrativas de hospitalidade. Sabemos que a hospitalidade foi tema de trabalho de Jacques Derrida.

Olgária Mattos salienta a diferença entre tolerância e hospitalidade, em Derrida. Fala-nos que na tolerância a lei fundamental, a lei soberana (diríamos) e a lei da Cidade e o ‘xenos’ é tolerado à medida que se torna ‘meteco’, isto é, se submete às leis do local. Haveria uma hierarquia cujo ápice é ocupado pelo senhor da Cidade, o soberano e todos são tolerados à medida que falam a língua da Cidade, isto é, do soberano. O estrangeiro pode fazer tudo, desde que não ponha em risco a Cidade, sua cultura, sua língua, sua ordem. A hospitalidade rompe com esta hierarquia imposta pela tolerância e opera a partir da horizontalidade. Não há um lugar privilegiado de onde a palavra flui e exige sua ressonância. O espaço político é público à medida do encontro de iguais. Apenas numa dimensão de hospitalidade há de se ter um espaço público de amizade construído a partir das diferenças. 

Sem querermos ser piegas, sendo, diremos que a hospitalidade é uma dimensão em que o ‘estado de exceção’ é profanado por um dispositivo de ‘philia’ entre desiguais. A ‘philia’ entre desiguais, segundo a hospitalidade, profana o conceito de amizade proposto por Aristóteles e ecoado nos pensamentos de Cícero, Agostinho, Aquino, Montesquieu e mesmo de Nietzsche e Foucault. A ‘philia’ dos desiguais não seria uma concessão dos que detém o poder, uma tolerância do poder às palavras dos ‘xenos’, mas uma profanação dos estrangeiros à língua normativa. Ao mesmo tempo que nos permite pensar a Cidade não mais como o espaço em que os reis da Grécia se encontram para discutir os interesses comuns. Permite-nos pensar a Cidade como o espaço em que os diferentes, segundo suas diferenças e diferentes proposições e demandas se encontram para debater, confrontar e buscar ajustes e acordos, ainda que provisórios.

A ‘philia’ entre desiguais é uma possibilidade de se retomar à democracia ateniense perspectivada pela experiência de Paulo de Tarso. O apóstolo aos gentios (traduzindo: enviado às pessoas que não são cidadãs) disse aos da Galácia: “na igreja (em grego ‘ecclésia’, ou seja, assembleia de deliberações e discussões de interesses gerais, públicos) não há judeu ou grego, cidadão ou estrangeiro, livre ou escravo, homem ou mulher, todos devem encontrar interesses comuns para conviverem, no espaço que é comum, público, ou seja, a Cidade.” A ‘philia’ entre desiguais é a construção de uma ‘ecclésia’ em que a palavra é dada a todos e todos podem participar igualmente da construção de uma Cidade mais justa e que promova bem-estar a número cada vez maior de pessoas, por meio da deliberação e debate público. A construção da justiça e bem-estar por meio da participação efetiva. A ‘philia’ entre desiguais é o espaço de construção de justiça e bem-estar, não restrito aos oligarcas (ricos) e aristocratas (intelectuais), e nem mesmo aos democratas (povo local), mas às mulheres, aos escravos, aos ‘metecos’, ‘xenos’ e ‘bárbaros’. Cuja única restrição é a busca pelo rompimento da participação hospitaleira da Cidade.

Podemos, então, voltar à leitura da soberania em Agamben. O risco maior que nos parece passar a Cidade não vem, seguindo os exemplos dados sobre Hitler e Guantanamo, de fora da Cidade. O maior risco que corre a Cidade é aquele da observância dos ritos e caminhos institucionalizados por parte de indivíduos que querem o poder para, por meio dele, decretarem ‘estado de exceção’. Não aquele de Hitler ou de Guantanamo, mas um mais sutil, da suspensão da ordem legal e instituída que valeu para que ele ali chegasse, mas o uso destas instituições para tornar político, público e universal, valores privados. Indivíduos que têm aversão não somente à hospitalidade, como também à tolerância e tem como projeto universalizar sua língua à toda Cidade. Indivíduos que têm no mito de Babel (do Gênesis bíblico) sua inspiração não explícita. Querem construir, edificar uma sociedade hierarquizada a partir de uma mesma língua e um mesmo modo de falar, que encostada na terra, possa se projetar até os céus. Uma Cidade que suprima as diferenças com vistas a divinização de um modo imutável de existência e que possa com isso tornar perene o nome dos edificadores, isto é, sua cultura, sua língua. 

Parece-nos que YHWH, o Sem-Nome, Ele-O-Nome como diria Haroldo de Campos, foi o primeiro profanador narrado nos textos antigos. Profana a língua e modo de falar, promovendo, assim, um uso novo aos dispositivos, que determinou a cessação das obras. YHWH traz a confusão das línguas a Bab-El (casa de deus, casa de ‘O’), dispersando os indivíduos e recolocando-os num mesmo plano, fazendo valer toda forma de variação e mudanças. Usos novos, segundo arranjos no tempo-espaço.

O risco do Estado que tem como dispositivo legal o ‘estado de exceção’ é se deixar tomar por indivíduos que têm aversão ao Estado Laico, aquele que promove a neutralidade e separação entre o público e o privado, assim como se apóia na liberdade de expressão e autonomia. O risco do Estado é fundar-se no ‘estado de exceção’ e não no encontro e confronto mediado por um Estado Laico, segundo uma ‘philia’ entre desiguais. O risco do Estado é vermos as instituições tomarem as feições dos soberanos que ali fincaram seus fundamentos e fizeram cessar as desigualdades em nome no nome de Um. O risco do Estado é deixar-se fundamentar pelo ‘estado de exceção’ e não pela assembléia de amigos que confrontam idéia e buscam encontrar ajustes promotores de justiça social e bem-estar para um conjunto crescente de indivíduos, de grupos, de estrangeiros e bárbaros.

Texto de Marcos Nicolini