quarta-feira, junho 10, 2015

PENTEANDO PORCO ESPINHO




Em certo momento dos evangelhos podemos ler claramente: “quem quiser vir após mim, tome a sua cruz e siga-me.” Estas palavra são atribuídas a Jesus, que os cristãos creem ser o Cristo. A tradição cristã, a partir de um dado momento, procurou homogeneizar certa interpretação para o calvário e a cruz de Jesus, ou se preferirem, de Cristo. Mas a cruz há de nos fazer retornar ao Éden, quando o casal primordial, chamado posteriormente de Adão e Eva, tomou do fruto que Deus havia proibido de comer e o comeram. Embora estas palavras não estejam no referido texto, os cristãos passaram a chamar aquele ato de “pecado original”, ou, o ato de desobediência humana que culminou na expulsão do Jardim de Éden. A humanidade, então, carregou uma dívida impagável que exigia resgate, pagamento. Assim, aquele que instituiu a dívida, Deus, envia aquele que há de pagá-la: o Filho de Deus. A cruz seria o momento em que o Filho de Deus se oferece em sacrifício a Deus em prol da humanidade, pagando, assim, a dívida que estava inscrita desde o Éden. A relação crime-castigo teria sido quebrada pelo sacrifício, este que abre as portas dos céus aos humanos, permitindo-lhes retornar a Deus. A alma do humano tem, por meio da fé em Jesus o Cristo sacrificado por nós, a porta aberta que permite trilhar o caminho até Deus.

A questão do pecado, introduzida na interpretação do Gênesis, é importante. No grego a palavra “pecado” é “amarthia”, isto é, “errar o alvo”. A metáfora implícita é a de um arqueiro que mira o alvo e falha em sua tentativa. O humano ao dar ouvidos à serpente passou a desejar ser igual a Deus, assim, teria errado o alvo, tornando-se assenhorado pelo pecado. Jesus teria dito, ademais, que somos servos de quem servimos. O humano tornou-se escravo do pecado, isto é, assenhorado pela serpente. O sacrifício da cruz seria o preço que Deus teria que pagar pelo resgate do humano. A cruz tornou-se o símbolo do resgate, do preço da liberdade humana, que o permite retornar a Deus, isto é, que ao crer pode trilhar o caminho de retorno a Deus. Jesus teria pago o preço, de uma vez por todas, mas o enganador de nossas almas permanece solto ao nosso derredor, rugindo como um leão, a fim de nos tragar novamente para a morte. Neste ponto a obediência, que é a contraparte do pecado, retorna como exigência moral. Haveria um conjunto de leis morais, ideais, que devemos nos submeter em obediência, a fim de nos afastarmos do perigo do pecado. Entre estes ideais estaria a família tradicional, composta por um homem, uma mulher e a prole. O sexo se daria no âmbito da heteroxesualidade e da monogamia.

Qualquer desvio deste alvo de idealidades implica em errar o alvo, isto é, pecar. Haveria um conjunto de normas morais que regem a vida do cristão, regras estas reveladas por Deus à humanidade, que a não observância, isto é, a desobediência significa rebeldia, tal qual aquela que Lúcifer teria realizado quando desejou ocupar uma posição similar a Deus, nos céus. Aquelas questões norteadores e normatizadoras das relações na família, na sexualidade, na obediência às leis pátrias, no trabalho, na submissão às hierarquias eclesiásticas, normas sobre o uso da linguagem (verdade/mentira, palavras chulas, seduções, sedições, etc.), normas sobre as vestimentas, sobre as condutas sociais, etc., tudo isto é idealizado, correspondendo ao pecado quando não as levamos em conta ou não nos identificamos com elas. Na cruz Jesus, ou Cristo, teria pago o preço da desobediência humana, no entanto, agora o indivíduo deve mostrar em seus atos a fé que diz ter. A moral cristã se torna não apenas rígida, como tradicional, isto é, tem seus arquétipos em modelos ideias que foram fixados no passado. Na cruz foi pago o preço do desvio, mas a partir da fé devemos conhecer o modelo revelado por Deus para o humano ideal e nos submeter a este modelo, enquanto Satanás e seus anjos buscam nos fazer desviar os olhos destes padrões divinos de valores e comportamentos morais.

O humano de fé se volta para a cruz e crê na possibilidade de se livrar das imposições da carne, dos apetites da imoralidade e se volta ao conhecimento dos modelos e padrões divinos que o permite viver com outros humanos, aqueles que compartilham da mesma fé, e aqueles que não compartilham. O padrão elevado da moral cristã coloca o crente numa posição superior de civilidade, de respeito às leis e às normas da cidade, da política. O cristão dos primeiros séculos foi reconhecido por sua conduta moral, cívica de obediência às leis, de ser pacífico e de contribuir com o bem comum. Os protestantes dos séculos XVI em diante, foram trabalhadores fervorosos que buscavam glorificar a Deus por meio de seu esforço e enriquecimento, além de uma moral ilibada. A cruz destes cristãos seria o dar as costas aos apetites carnais, daquilo que é passageiro, mutável, corruptível, voltando-se para o eterno, o imutável, o incorruptível, etc. Sacrificavam, assim, seus corpos a fim de obter um prêmio de excelência maior na eternidade.

Mas o que, de fato, se torna eterno é o pecado, a culpa e o sacrifício. Como as exigências morais são ainda mais elevadas e as regras ainda mais rígidas, as chances, as possibilidades, a efetividade de um humano em cumprí-las, em realizá-las é inexistente, é impossível. Sempre o humano estaria retornando ao Éden e retomando o fruto proibido e comendo-o, sendo expulso dali infinitas vezes. O cristianismo se torna trágico, pois o sacrifício não cessa, antes, se reproduz como numa linha de produção. Jesus, ou Cristo, retorna incessantemente para a via crucis, carrega a cruz, é violentado, pendurado, desnudado, escarnecido, abandonado e morto bilhões e bilhões de vezes. A alternativa é que o sacrifício de Jesus, ou Cristo, tenha pago os pecados do passado e do futuro, segundo a potencia eterna do sacrifício vicário. Mas, então, temos um problema com a obediência, pois na superabundância sacrificial a obediência pode ser abandonada em nome da graça.

Outro problema do esquema pecado original e dívida satânica é que Deus decretou esta norma, mas Deus, a despeito de seu poder único e inigualável, não decretou o fim da dívida. Em outras palavras, por que Deus, no lugar de exigir sacrifício, não, simplesmente, disse: estão perdoados os pecados? Explicando melhor. Deus, no Éden, disse ao humano que se ele comesse do fruto do conhecimento do bem e do mal, ele (o humano) morreria. O casal, não obstante esta recomendação, tomou do fruto e comeu, assim dizem os cristãos, e pecaram. Por que será que Deus não se voltou para o casal e, imediatamente, lhes disse: “eu vos perdoo”? Não! Muito pelo contrário, exigiu que seu filho se tornasse um sacrifício para pagamento de uma dívida que os humanos tinham com o próprio Deus. Deus paga sua própria dívida?! Imaginemos que José deva a Manuel um valor impagável. Depois de várias tentativas frustradas, Manuel diz a José: Ok, você não vai me pagar, então, eu mesmo me pagarei. Tira um talão de cheques do bolso, preenche com o valor da dívida, assina-o, e dá o cheque preenchido e assinado a si mesmo. E diz a José: agora você me deve obediência. A narrativa do pecado-dívida-sacrifício pode ser simplificada nesta anedota.

A questão central está, nesta narrativa, na dívida impagável criada pelo soberano e a obediência daqueles que são colocados diante de exigências sobre-humanas. Exigências morais que são da ordem do íntimo, do privado e do social, mas também são da ordem do público e do político, pois tanto devemos nos identificar com os padrões e valores comportamentais e sociais, como temos o dever de obedecer às autoridades como que instituídas por Deus. Quaisquer atos contrários ao Estado, às leis, à moral pública e privada, assim como desejos íntimos e secretos são tomados como desvios do alvo, portanto, pecaminosos, passíveis de punição. O sacrifício de Jesus, ou Cristo, na cruz nos lembra aquelas palavras dele mesmo: “vocês, fariseus, se esforçam para fazer um prosélito, quando conseguem impõem a ele uma carga ainda mais pesada do que aquela que tinha antes.”

Temos que imaginar, sem temor, que a narrativa da cruz tenha outro sentido. Imaginemos, por mais absurdo que possa nos parecer, que a cruz não teve como propósito o pagamento de dívida, pelo contrário, apontou para o fato de que não há dívida alguma a ser paga.

Imaginemos que o pecado original não seja atribuível ao ato de comer o fruto, mas o de estabelecer sacrifícios como forma de aplacar a culpa e as dissimetrias. Em outras palavras, o pecado não é uma rebeldia contra um mandamento, nem um ato profanatório, mas o ato de sacralização. Ao sacrificarmos estabelecemos um corte que separa, que segrega as partes que antes estavam unidas, formando um todo. Agora, temos uma parte destinada ao que é alto e sublime e uma parte que é destinada ao que é baixo e vil. Justificamos o sacrifício no erro a ser corrigido, ou, na busca de aplacarmos as forças que buscam restituição de um erro, de uma perda, de um desvio. Mas, contudo, o erro é a imputação de dívida a quem nada deve e a requisição de um sacrifício a quem não tem culpa. Portanto, o sacrifício é o pecado e como tal produz morte. O sacrifício é o assassinato injusto e ineficaz que legitima a segregação, a assimetria, as imposições. A lei do pecado é a morte, isto é, o sacrifício se impõe como o próprio desvio de uma norma divina, que é a vida.

Se o Gênesis não for a narrativa de uma dívida imputada por Deus aos humanos, mas a introdução de uma simulação de erro que justifica a segregação e as dissimetrias, como fica a cruz de Jesus, ou Cristo? Podemos imaginar Jesus, ou Cristo, diante daquela barbárie que era o sacrifício e percebendo a mentira que está subjacente a este simulacro de ordem tenha pretendido tornar manifesto a mentira sacrificial. O sacrifício é o dispositivo de ordem político-teológico de legitimação da dominação. Mas Jesus Cristo, disse: “entre vós não será assim, pois o maior entre vós será quem vos servir.” Jesus Cristo se volta contra a dominação do humano pelo humano e percebe no sacrifício o dispositivo de legitimação da dissimetria de poder. Entendamos que o sacrifício é o que garante que o erro seja purgado, pago, portanto, garante a continuidade da ordem social. O sacrifício reinstaura a ordem sócio-política, e mantém o cosmos, que está integrado, imbricado com o político. Sacrificar é reinstaurar ordem e não sacrificar é por fim ao mundo. Jesus Cristo, por sua vez, move-se no sentido de demonstrar que a ordem político-jurídico-social do mundo se funda na mentira, na falácia, na violência, no poder. A mentira do poder é aquela que diz que o sacrifício garante a ordem social, assim, cada um de nós há de se entregar voluntariamente ao bem maior.

Desta maneira, podemos imaginar, Jesus Cristo teria proposto sua morte a fim de demonstrar que o sacrifício é ilegítimo, violento e suporta a grande mentira da Pólis Grego-Romana: a ordem social exige sacrifício dos cidadãos. A morte de Cristo na cruz não instaura ordem, mas amplia a desordem. Os textos subsequentes aos evangelhos procurariam demonstrar que a desordem é crescente na região da Palestina, até que no anos de 70 dC. Jerusalém é arruinada. A morte de um homem justo não produziu a ordem, mas a desordem, o assassinato, a injustiça. Os textos escatológicos, de Mateus, Tessalonissenses, Apocalipse, etc., procuram mostram como a ordem sacrificial não instaura ordem, mas violência, dissimetria, morte, etc. Jesus Cristo não teria morrido para pagar o preço do pecado, mas para demonstrar que o verdadeiro pecado é a mentira do sacrifício. Como diz o profeta Daniel: o Messias fará cessar todo sacrifício. A cruz demonstra que é o sacrifício que deve ser eliminado, com ele a culpa/dívida. Não há dívida alguma a ser paga a Deus, este é o sentido da morte da cruz. Por isso Jesus Cristo teria dito para que cada um pegue a sua cruz e o seguisse, isto é, creia que não há dívida alguma a ser paga e que o sacrifício apenas sustenta uma mentira que garante a violência, a opressão, o poder dissimétrico que exige a morte sacrificial do indivíduo em prol das elites e poderes.

Paulo teria escrito mais tarde: nossa luta não é contra a carne e nem sangue, mas contra os “Arché” (em latim “Imperium”, em português, “o Império”, os poderes expressos pelas elites políticas, culturais, econômicas, religiosas, etc.). Em outro lugar havia escrito: Deus nos transportou do Império (“arché”, “Imperium”) das trevas para o reino (“basileus”) do Filho”. Não é uma questão de se voltar contra a política, mas se voltar contra o fundamento da Política, isto é, o sacrifício daqueles que estão destituídos de poder, daqueles que estão à margem do poder, da periferia do poder. É reestabelecer uma possibilidade de vida comunitária que não se funda nas dissimetrias, nas segregações, nos cortes, nos sacrifícios, mas na igualdade das diferenças. Foi o movimento a partir do século II dC., quando os Patriarcas da Igreja começaram a ler os gregos e os romanos, que tornou a Igreja em um modelo moral rígido que exigia abstinência de certos comportamentos morais. A morte de Jesus Cristo na cruz aponta para o fato de que o poder, as elites, os discursos legitimadores da ordem pela via sacrificial, estão sempre fazendo crer na falácia da dívida primordial do indivíduo para com a coletividade, portanto, é exigido deste indivíduo seu sacrifício em prol da ordem. São, no entanto, os segregados, os periféricos, os despoderados que devem se sacrificar pelo bem de todos. O sacrifício destes periféricos é que garante a ordem. Sacrificam suas liberdades em prol do Arché, do Imperium, do Estado. Jesus cristo, segundo esta imagem que projetamos, teria demonstrado que o sacrifício não funda ordem, mas funda submissão.

Nos últimos duzentos anos a representação sacrificial tem sido demonstrada pela moral pequeno-burguês, ou a moral revolucionária marxista. Ambas exigem o sacrifício do indivíduo periférico em prol da sociedade, quer seja ela dominada pelas elites econômicas, quer seja ela dominada pelas ideologias totalitárias. Nas últimas décadas, enquanto a moral sacrificial do trabalho encontrava seus limites últimas de ordenamento da vida social, uma outra moral comezinha tomava vulto: a sexual. Por conta da revolução industrial-taylorista, das guerras mundiais e da pílula a mulher passa a ocupar espaço na vida do trabalho e na vida pública, esgotando, assim, aquele arranjo da família burguesa em que o pai sai para trabalhar e a mãe cuida da economia doméstica e da educação dos filhos. Esta ruptura faz emergir um problema de sentido para a moral cristã-burguesa, que se volta para estabelecer suas fronteiras de sentido na relação estrutural hetero x homo. A despeito da complexidade do tema, podemos perceber que a religião sacrificial que busca modelos ideias aos quais os indivíduos devem se identificar encontrou na fixidez biológica um substrato “natural” que aponta para o lugar do homem e da mulher. Determinando o modelo de família ideal formada por um homem, uma mulher e seus filhos, a religião sacrificial encontra uma forma a qual os indivíduos devem se identificar e se submeter, amoldando-se a este ideal, sacrificando suas escolhas pessoais.

Entretanto, se é o sacrifício que Jesus Cristo põe fim, então, esta ordem natural deve ser exposta a valores que não emergem espontaneamente dela. O que isto poderia querer dizer? Que não haveria um modelo de família ideal dada pela imagem estética e de papeis sexualmente determinados. Antes, haveria um princípio relacional que deveríamos preconizar, priorizar, valorizar, buscar, que seria aquele encontrado na cruz. O princípio do cruz é o do amor gracioso e não da lei modelar. A lei, a norma, a moral é resultante de um reconhecimento das demandas individuais e dos ajustes coletivos que priorizam o amor gracioso. A morte na cruz é o entendimento que o sacrifício não representa e nem impõe ordem, mas que podemos ordenar a vida a partir do reconhecimento mútuo, tendo como fundamento elegível (por fé) o amor gracioso. O que o amor gracioso deseja não é o modelo ideal de família entendido como papeis sexualmente determinados, mas queremos relacionamentos que reconheçam nossa individualidade e nossa carência de sentido dado na comunidade. Não se tem um projeto de família que exige o sacrifício de nossas individualidades e escolhas, mas um movimento que visa o encontro em uma comunidade que oferece liberdade e fronteiras de sentido.

Hora, a ordem sacrificial impõe modelos e fixa conteúdos, sacralizando monumentos, exigindo que a forma ideal e inalterada seja identificada. Haveria, assim, uma relação estrita entre um acontecimento passado e a imagem espetacular que devemos estabelecer a fim de retomar aquela identidade que podemos perder. No entanto pode deixar escapar o sentido do acontecimento. A cruz, por exemplo, não é sacra naquela representação espetacular que estamos habituados a ver nos cinemas, mas aquele acontecimento crucial encontra sua eternidade na crítica à violência e na abertura do reconhecimento da segregação, do sacrifício que se requer dos marginalizados. A cruz não é sacra quando olhamos para uma tela de cinema, mas quando percebemos o discurso contra a dissimetria instaurada por um poder violento e segregador. A cruz é sacra quando enxergamos no Cristo a imagem de todos aqueles que são sacrificados, inutilmente, injustamente, em prol da ordem pública e tradicional. A sacralidade simbólica da cruz está na crítica ao sacrifício.

Neste sentido aquela imagem de uma mulher seminua pregada a uma cruz, ensanguentada e machucada, tendo escrito sobre sua cabeça não o INRI histórico, mas o GLBT moderno, rompe com a espetacularidade quando critica a segregação imposta por modelos formais que exigem a identidade do indivíduo no todo que deveria se impor sobre ele. Aquele gesto antes de significar uma afronta a um símbolo cristão, representa uma atualidade da ignomínia sacrificial, da violência que as normas e regras morais estabelecem quando voltam-se contra o sentido do reconhecimento que requer o amor gracioso. Se há alguma atualidade da cruz é, em primeiro lugar, a de apontar para o reconhecimento de nossas diferenças que igualmente reclamam por amor gracioso e, em segundo lugar, a criticar a violência das segregações impostas por regimes hierárquicos que são ditados por elites políticas, econômicas, acadêmicas, culturais, religiosas, etc. Devemos louvar a coragem daquela que tomou a cruz de Cristo e o seguiu, sendo perseguida, assim, pelos neo-fariseus. E, como disse Paulo: contra o amor não há lei.

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

segunda-feira, junho 01, 2015

O TEMPO SATÂNICO



“No princípio criou Elohim os céus e a terra, e a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” (Gêneses 1: 1 -2)

Passaram-se milhares de anos desde que esta pequena peça foi escrita. E ainda continua um mistério. Por sua vez, os gregos não viam no tempo início e nem fim. Um grande helenista do século XIX, Friedrich Nietzsche, pensando grego, imaginou que sendo a matéria finita e o tempo infinito, os arranjos possíveis daquela, necessariamente, tragicamente, inelutavelmente, fariam com que retornássemos, sempre e infinitas vezes, ao mesmo lugar. Faremos exatamente o que já fizemos, estamos fazendo hoje e reincidiremos infinitas vezes a fazer. Resta-nos amar de tal maneira o que fazemos, que tal “amor fati” nos possibilite escapar deste nada que seria a vida.

Mas há, entre os gregos e Nietzsche, um outro grande pensador, neoplatônico-cristão, que tomando sua herança judia, percebeu no Gêneses bíblico uma indicação não infinita, mas finita do tempo. O tempo veio a ser, juntamente com a matéria (aquelas duas categorias apriorísticas de Kant: tempo-espaço) criado no princípio. O tempo e o espaço têm um princípio, o que quer dizer que são ambos são finitos. Assim, dizer “princípio” é entender que há o tempo zero, portanto, que há um primórdio do tempo, implicando numa origem e acontecimento no qual se fez tempo. Não havia tempo até que houve tempo, quando a terra e céus foram criados. Algo fora do tempo e anterior à matéria pôs a funcionar o tempo num espaço-tempo. Agostinho atribuiu esta criação de tempo e espaço a Deus.

Santo Agostinho pensou o tempo criado, mas buscou ir um pouco além do dizer sobre o princípio como o princípio do tempo, pois queria saber o que é o tempo. Perguntou sobre o tempo e percebeu o tempo como passado, presente e futuro, isto é, fluxo que escoa com o espaço, tornando possível que concebamos arranjos das coisas. Os arranjos que foram chamamos de passado e os arranjos que esperamos que venham a ocorrer, chamamos de futuro. Percebeu, contudo, que o passado é o tempo que foi, que não existe mais, o passado é um tempo que já não mais é, não mais existe. O futuro é o tempo que ainda não é, que ainda não existe. O presente é um instante que nunca é, pois que como instante está constrangido pelo tempo que não é mais e pelo tempo que ainda não é. O presente é fluxo contínuo, nunca sendo, jamais existindo. O tempo como o que não é. O tempo como privação do ser.

Mas se nos arrogamos a dizer que o tempo se apreende como privação do ser, permitimo-nos um salto tenebroso, diríamos, nefasto, demoníaco, diabólico. Se em suas Confissões, no capítulo X em diante, Agostinho tratará do tempo como possibilidade de dizer o que não é, como privação do ser, anteriormente, o bispo do Hipona nos havia dito, ainda em suas Confissões que o mal é privação do bem. O mal não tem essência, é esta privação essencial de bem, que nos permite compreender o incompreensível. Mas, o que ocorreria se aproximássemos estas duas assertivas, “o tempo como privação do ser, posto nunca ser” e “o mal como privação do bem”?

Se pudermos perceber em Agostinho que o “ser” e o “bem” são categorias indissociáveis, permutáveis, que dizem respeito ao mesmo, então poderemos ter um problema diante de nós. Sobretudo, pois, dentro da chave neoplatônica agostiniana, o Deus de sua fé é aquele que permanece sempre idêntico a si, imutável, incorruptível, não sujeito às mudanças. Deus é o Ser em si (numa fórmula kantiana), é aquele que é, que não muda e não está no tempo, não se coloca no tempo, mas fora do tempo, cria o tempo e o espaço, o espaço-tempo. Se é o Deus da criação do espaço-tempo e de tudo que pode ser compreendido neste espaço-tempo, também é o Deus que cria a privação.
Aqui devemos nos lembrar de Albert Einstein, e dizer que não há espaço sem tempo e não há tempo sem espaço, assim, não é espaço e tempo, mas espaço-tempo.

Retornando a Agostinho, Deus é o Ser, como tal é Belo, é Justo, é Verdadeiro e é o Bem, segundo a chave neoplatônica a que faz referência o Bispo. Essencialmente o Bem, o Belo, o Justo e o Verdadeiro são, em si, sempre idênticos a si mesmos, são Ser em si, constantes, eternos, imutáveis. Desta maneira, o Bem é em si enquanto Ser e o Ser é o Bem essencialmente, tanto quanto é Belo, Verdadeiro e Justo, não sujeitos ao tempo-espaço. Mais do que isto, Ser Bom é, necessariamente, Ser Belo, Ser Justo e Ser Verdadeiro.

Por sua vez, o tempo como privação é carência do Ser, consequentemente, do Bem, o que o torna identificável, enquanto carência, ao mal. O tempo apresenta-se a nós como o mal, segundo a carência do que é eterno. A literatura bíblica apenas vai identificar o mal como um anti-ente muito mais tarde, bem depois do Gênesis. O mal como anti-ente surgirá nos textos bíblicos em Jó.

Podemos lembrar aquela passagem quanto Deus estava nos céus e satanás entra de vesgueio em sua presença e procura um modo de corromper o servo de YHWH, do Senhor. Devemos notar que enquanto no Gêneses 1, Elohim cria o tempo-espaço, no diálogo de Jó usa-se o tetagrama YHWH, para se apontar ao inapontável, para trazer à possibilidade humana, espaço-temporal, o que não é dado no tempo-espaço. O tetragrama aponta para a impossibilidade de se tomar referência no espaço-tempo, ao que está além destas categorias, antes, é fundamento do categorial: as categorias são criação no espaço-tempo. O mal, representado em Jó pelo verbete satanás, procura um modo de corromper aquele homem, fazê-lo abandonar o Ser justo, conduzindo-o a priorizar a corrupção, a passagem, o não-ser do tempo que de nós retira os bens e a vida. A vida é o que não está no tempo, é o bem acima do tempo e que não se limita ao espaço. Mas satanás quer que Jó a limite, reduza-a ao tempo-espaço.

Satanás quer, ainda mais. A esposa de Jó diz: “renega teu Deus, e morre”, isto é, morra entregando-se ao circunstancial. Mas a conversa de satanás é ainda mais interessante, pois desenvolve-se na tentativa de mover Deus para o tempo, requerendo dele que socorra, no espaço, seu amado servo Jó. Se satanás ganhasse a parada, moveria o imóvel, corromperia o incorruptível, tornando o Ser em não ser, colocando-o no tempo movediço das circunstâncias. Reduziria a vida ao espaço-tempo que é sua negação enquanto carência radical. O que satanás pretendia dizer é: “Deus pois a Si no tempo-espaço, o que quer dizer que tanto o tempo-espaço se divinizaram, quanto Deus se espaço-temporalizou.”

Mas, devemos sublinhar que a palavra satanás vai surgir antes desta em Jó (o antes é apenas referência da sequência dos textos bíblicos como eles são organizados, que não respeitam o tempo, mas outra construção). Satanás surge, traduzida como oposição, impedimento, quando os israelitas saem do Egito e, pretendendo rumar à Canaã, são impedidos por déspotas locais. Satanás surge como o obstáculo, o impedimento para que a vida siga o caminho livre. É constrangimento, tirania, um poder de não ser livremente. É apenas na Idade Média tardia que satanás, como aquele que obstaculariza a vida livre se torna um ente e como tal pode ser ator principal em filmes de holywood e fazer fortunas nas Igrejas brasileiras. Mas vamos com calma com o andor que o demônio é um relógio de barro.

Retornando à tempo, lembramos que o tempo é carência do ser, do bem, como tal, pode se identificar com o mal, que é carência do bem, do ser. O tempo e o mal se co-pertencem e se interpenetram tanto quanto o Ser e o Bem. O tempo e o mal tomam, no texto bíblico o epiteto de “satanás”, “diabo”, “demônio”. O tempo é o diabo. O grande mistério que a teologia nos coloca é entender como que o Bem pode criar o mal, como que do bem advém o mal. O profeta Isaias dirá, em referência a Deus: “Eu fiz o bem e criei o mal”. A palavra “criar” que se utiliza Isaias é o conceito hebreu traduzível pela palavra “bará”, ou seja, fazer algo surgir sem que haja algo anterior a ele a partir do qual este venha a existir. Lembramo-nos aqui de Aristóteles e suas quatro causas. O filósofo grego pretende dizer que para que um artífice possa produzir algo, há de articular quatro causas: a formal, ou seja, uma representação imaginária da coisa (digamos, a ideia de um martelo); a causa material, ou seja, a matéria na qual irá dar ao martelo a forma imaginada (a madeira, o aço); a causa eficiente, ou seja, o artífice com sua competência e os dispositivos que transformarão a matéria na forma planejada; e a causa final, ou seja, o motivo de se fazer o martelo, o uso do martelo. O profeta Isaias e o autor do Gêneses rompem com este imperativo causal. O mal é sem causa, tanto a formal, pois o mal é carência do Ser, não há uma imagem, um ser-mal de onde se imagina o mal, mas é pura carência de ser; também, não há causa material, pois em Deus não se há carência alguma, portanto nele não há uma “matéria” para o mal; não há, contudo e sobretudo, a causa eficiente, pois Deus não cria como um artífice. Assim, ao não produzir, é a carência da ação que advém o mal; por fim, o mal carece de sentido, o mal não deseja, não tem vontade, não age motivado por qualquer anseio, a não ser tragar tudo sem nunca se saciar de nada. O mal é pura carência e como tal foi “bará”. É este desprovisão teleológica do mal que o torna tão efetivo, basta lembrar o trabalho de Hannah Arendt, sobre Eichmann em Jerusalém, o mal banal.

O tempo, como o mal em sua carência absoluta, é como que desprovido de  qualquer finalidade e por conta desta desfinalidade age como dissipador da finalidade que há na vida, e, assim, tenciona a vida para a mudança, tão mais acelerada quanto mais complexa se tornam os arranjos espaço-temporais da artificialidade. O que podemos pensar sobre a vida? A vida é o que está embrenhada no tempo, que se articula no tempo e no que o Gêneses chama de céus e terra, isto é, o espaço. A vida escoa pelo tempo e pelo espaço, como um sopro no barro, sem se tornar barro no tempo. A vida é o que continuamente se libera do tempo penetrando no espaço, e se mantém além do tempo como resistência ao tempo, ainda que o espacial se corrompa e mude. A vida como o que é livre do tempo, resiste à passagem, permanecendo igual a si mesma. Se Deus “bará” o mal, conforme nos fala o profeta, fez o bem, ao introjetar no espaço um tanto de si, sem se deixar apreender pelo espaço-tempo. O sopro divino é o que perpassa o espaço-tempo sem ser contido ali. O autor do Gêneses, então, dirá que Elohim “bará” o “aadam”, o humano à imagem de Deus, mas também fez o “aadam” do solo, da terra, do húmus. E ao fazer o “aadam”, soprou-lhe as narinas com a vida que não está no barro. A criação, exemplificada por “aadam”, traz em si a vida, que é divina, portanto inapreensivelmente incorruptível, mas que é perceptível no tempo-espaço. Embora a criação esteja imbricada no tempo, portanto, sujeita às mudanças e à corrupção, a vida é o que não se retém alí.

O que nos importa aqui, para além de outras considerações, é que a vida, que se volta a escapar da morte no tempo, torna-se complexa, e ao se complexificar se assujeita ao tempo do qual busca escapar, encontrando, assim, a morte. É como um eco daquelas palavras: “se comerdes do fruto do conhecimento, morrendo morrerás”, isto é, ao atentar para os limites do tempo e do espaço, visando escapar-se-lhe dele, encontrará neste artifício a morte que tentou não morrer. Assim é a vida em sua complexidade e o tempo, os seres mais complexos se entregam mais à morte. A morte é este abismo que se abre na criação e que estabelece as trevas do tempo entre a vida e o Ser. Quanto mais a vida se complexifica, mais se torna refém do fenômeno da existência temporal, distanciando-se do Ser, até que se aliene totalmente da experiência de ser, entregando-se totalmente à carência, que é o tempo. A própria vida deixa de ser vida, entregando-se ao que já foi e ao que ainda não é, fragmentando-se no nada. A experiência da vida se torna laboratorial, reprodutiva, massiva, matemática, industrial, trágica e inescapável: grega. O vão entre a vida e o Ser é preenchido pelas trevas do tempo e seus dispositivos alienantes: o poder tirânico da tragédia. A vida, por sua vez, é o que ocorre quando abstraímos do tempo, no tempo. É o que transpassa os corpos (o espaço) e que se liberta dos impedimentos satânicos que a desejam apreender e a submeter à pura passagem sem sentido.

Não é por menos que na complexidade de nossa contemporaneidade, ainda duas fórmulas temporais lutam por uma monotonia imperiosa: do Progresso e da História. O Progresso e a História são, cada uma a seu modo, as duas fórmulas trágicas causadas por um organismo complexo que, tentando fugir da morte, se entregam como bodes expiatórios ao tempo. O Progresso e a História são duas ficções narrativas que nos dizem como os organismo complexos que somos, devemos nos organizar a fim de realizar o trágico destino proposto como causa final. O Progresso e a História são os dois discursos legitimadores de nossa morte anunciada, como submissão irremediável ao tempo. Estamos todos nós, ainda hoje, como Jó, diante do tempo que corrompe o corpo, como anúncio de uma morte, isto é, a obstrução trágica da vida, como se esta se restringisse ao espaço-tempo. Estamos todos como Jó, face à angústia da passagem malévola, buscando a vida que insiste em nós, lutando contra as narrativas falaciosas que nos obrigam a dizer: maldiz a teu YHWH e morre! Mas podemos, quem sabe, permitirmo-nos ouvir a voz que diz: “Onde estavas tu quando Eu criei o tempo-espaço?”. Em outros termos: não é no tempo-espaço que a vida está, mas no indizível que se repousa numa tradução impossível de YHWH, não apreensível pelo que está limitado ao tempo e no espaço.



Em suma, o tempo é o demônio que abita no abismo entre a vida que se quer livre e o Criador que no-la deu. Neste abismo nefasto se introduziu, como angústia de quem se volta para olhar amedrontadamente o nada, do absolutamente carente, o poder de impor o tempo como dispositivo de imposição de morte. O abismo é o corte que a morte produz entre a vida livre e o que escapa ao tempo, preenchido com narrativas ficcionais e temerosas daqueles que temem ser esquecidos no nada. Resta o gládio, o bellum daqueles que entregues à carência trágica, lutam por manter na memória sua passagem efêmera, negando a vida, visando a glória efêmera. O gládio que corta e amplia o abismo, que se preenche de tempo, que afasta a vida pela morte. O gládio que buscando fazer triunfar a morte, quer manter viva na memória do que ainda não é, o passado de quem matou para viver. Seria esta a tragédia sacrificial que a Pascoa desnudou em sua falácia e violência? Se sim, abre-se a nós, incessantemente a vida como o que permanece constante, que diante da morte insiste em ver o fora do tempo a que podemos nos voltar. Enquanto o tempo se acelera na complexidade, a vida se mantém inalterada na simplicidade do Criador, que nos diz: “eu vim para que tenham vida...

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.