Ao concebermos um Deus criador, identificamo-lo, na maioria das vezes, com um artífice superior, e, qualquer que seja a doutrina que considerarmos - quer se trate de uma doutrina como a de Descartes ou como a de Leibniz -, admitimos sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento ou, no mínimo, que o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente o que está criando. Assim, o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de corta-papel, no espírito do industrial; e Deus produz o homem segundo determinadas técnicas e em função de determinada concepção, exatamente como o artífice fabrica um corta-papel segundo uma definição e uma técnica. Desse modo, o homem individualmente materializa certo conceito que existe na inteligência divina. No século XVIII, o ateísmo dos filósofos elimina a noção de Deus, porém não suprime a idéia de que a essência precede a existência.
O homem possui uma natureza humana; essa natureza, que é conceito humano, pode
ser encontrada em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplo
particular de um conceito universal: o homem.
O existencialismo ateu... Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser
no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser
definido por qualquer conceito: este ser é o homem, ou, como diz Heidegger, a
realidade humana. O que significa, aqui, dizer que a existência precede a
essência? Significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si
mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define.
O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma
definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e
será aquilo que ele fizer si mesmo. Assim, não existe natureza humana, já que
não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão somente, não apenas como ele
se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência,
como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do
que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do
existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade: a subjetividade
de que nos acusam. Porém, nada mais queremos dizer senão que a dignidade do
homem é maior do que a da pedra ou mesmo a da mesa. Pois queremos dizer que o
homem, antes de mais nada existe, ou seja, o homem é, antes de mais nada,
aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se projetando
no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo
subjetivamente ao invés de musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes
desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o
que ele projetou ser.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Traduções de Rita Correa
Guedes, Luiz Roberto Salinas Fortes, Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril
Cultural, 1984 (Os pensadores)