O “Ser”, embora para o pensamento
discursivo não seja um atributo, é a expressão de uma pura relação e, para a
consciência religiosa, o mais elevado atributo possível, um resumo, enfim, de
todos os outros atributos particulares, sendo referido como própria “Palavra”.
Estabelece-se então aquela equação na qual “Ser” e “Palavra” são identificados:
Só uma designação pode caber a este Deus,
junto à que o qualifica como Criador do mundo, formador de homens e deuses: a
do Ser simplesmente. Ele engendra e não é engendrado, pare e não é parido, ele
mesmo é o Ser, o Constante em tudo, o Permanente em tudo. Por isso, Ele “é
desde o princípio”, “é desde a origem” e tudo o que é, chegou a ser depois que
Ele foi. Todos os nomes divinos isolados, concretos e individuais, foram aqui
fundidos no único nome do Ser; o divino exclui todo o atributo particular, não
pode mais ser descrito por nenhuma coisa e só pode ser predicado por si mesmo.
(CASSIRER, 1985)
Não obstante, outros dois
desenvolvimentos acontecerão a par desta nova configuração da divindade, agora
num patamar místico. Quando o sentido do divino se abre ao ser da Pessoa, para
além do da coisa, o pronome pessoal agrega-se ao “Ser”, daí derivando o “Eu
Sou”. Estamos aqui diante do monoteísmo puro, no qual vai entroncar-se a
tradição judaico cristã. Para Cassirer, explicando a importância deste passo na
evolução da consciência religiosa:
“Só por meio desta transformação da
existência objetiva no ser pessoal se eleva verdadeiramente o divino à esfera
do “incondicionado”, a um domínio que não pode ser designado por nenhuma
analogia com uma coisa ou nome de coisa. De todos os meios da linguagem, só
restaram as expressões pessoais, os pronomes pessoais, para a Sua designação:
“Eu sou Ele”; “Eu sou o Primeiro e o Último”, conforme está escrito nos livros
proféticos.” (CASSIRER, 1985)
O segundo desenvolvimento
referido dá-se através da junção mais íntima das vias de contemplação religiosa
centradas na dimensão do “Ser”, abstração das coisas em particular que encerra
em si o que é comum a todas as coisas, e na dimensão do “Eu”, abstração das
pessoas em concreto que engloba o que é comum à existência de todas as pessoas.
Recorrendo aos termos da tradição hindu, Cassirer sublinha a ocorrência de uma
identificação entre “Ser” e “Eu”, Brahman e Atman, objeto e sujeito, resultando
daqui um “Eu-mesmo”. No entanto, porque agora a linguagem já não é capaz, como
em anteriores etapas, de abranger a unidade entre sujeito e objeto, a
consciência religiosa vai libertar-se do poder da palavra e da linguagem,
abrindo-se mais marcadamente à esfera do transcendente, do impossível de
alcançar pela palavra e pelo conceito. Neste ponto surge a teologia negativa,
caracterizada por um procedimento apofático que remete sempre para um “mais
além” que, embora enraizado no imanente, é inalcançável pela palavra humana: “The more God is in all things, the more he
is outside them. The more He is within, the more without.” (M. ECKHART, cit. in HUXLEY, 2004).
Cassirer, relativamente ao seu
estudo deste desenvolvimento da consciência mítico-religiosa a par do
desenvolvimento da apreensão linguística, vai afirmar:
“Há, pois, no âmbito da percepção
mítico-religiosa um “inefável” de diferentes ordens, um deles marca o limite
inferior da expressão verbal, enquanto o outro representa o limite superior;
entre ambos os confins, traçados pela própria natureza da expressão verbal, a
linguagem pode agora mover-se livremente, exibir toda a riqueza e profusão concreta
de seu poder de configuração.” (CASSIRER, 1985)
A palavra, nascendo, permitirá
que o mundo externo se torne apreensível para a consciência humana. O ato da
denominação gera a ordem, o cosmos, resgatando o ser humano do caos. Já num
estrato superior, a linguagem dá-se conta dos seus limites, percebendo, por via
do desenvolvimento da consciência lógica a par da consciência mítico-religiosa,
a impossibilidade de comunicação da unidade entre sujeito e objeto intuída pela
segunda. A comunicação da percepção de tal unidade, no limite, nunca será
viável, pois o domínio dessa comunicação não poderá ser outro que o da
consciência mítico-religiosa, mas a linguagem, não obstante, apontará, como que
vigiando e dando em si mesma, lugar ao que não pode ser dito, para a esfera
transcendente e sobre-humana na qual se conservará a validade dessa percepção.
No entanto, os grandes místicos continuarão a afirmar a viabilidade de uma
certa experiência dessa não-dualidade, apesar da inexequibilidade da sua
recolha no seio das palavras.
Bibliografia:
Cassirer, Ernest. Linguagem, Mito e Religião. Trad. Rui Reininho. Porto: Rés, 1976.
Cassirer, Ernest. Linguagem, Mito e Religião. Trad. Rui Reininho. Porto: Rés, 1976.