"A condição da livre expressão das crenças e das
práticas religiosas é que elas não transgridam, em nenhum momento, a ordem
pública"
Um Estado no qual as autoridades
religiosas não fazem parte da regulação da vida pública: essa é a definição
mais simples que podemos dar a um Estado laico. Isso significa que a elaboração
do Direito é responsabilidade apenas do poder público. Consequêntemente, uma
instituição religiosa não pode, de nenhuma forma, prescrever aos fiéis práticas
e comportamentos que os conduziriam à contravenção das leis.
Essa proposta é suficiente para
definir as condições em que as manifestações religiosas são aceitáveis em um
Estado laico: é preciso que não contradigam os princípios fundamentais que a
Constituição define, as leis e regras que regem a sociedade a que dizem
respeito e da qual o Estado é a garantia. Em todos os outros casos, o Estado
deve intervir para impedi-las.
Mas tal proposta não implica que
as religiões sejam condenadas à invisibilidade no espaço público. Nas
sociedades democráticas, o livre exercício da liberdade religiosa é um
princípio fundamental, e o Estado deve, necessariamente, assegurar sua
proteção.
Ocorre que a liberdade religiosa
não se refere só à liberdade de consciência privada. Refere-se, igualmente, ao
direito a cada um, e de toda a comunidade, de exprimir publicamente suas
crenças e de praticar seu culto.
Um Estado democrático deve,
aliás, zelar, em uma sociedade pluralista, para que todas as comunidades
tenham, nessa questão, direitos iguais. Porém, a condição da livre expressão das
crenças e das práticas religiosas é que elas não transgridam, em nenhum
momento, a ordem pública.
Os princípios são simples.
Colocá-los em prática é, evidentemente, muito mais complicado. De um lado,
porque a definição da transgressão à ordem pública é sempre delicada e sujeita
à interpretação: ela é vista, por exemplo, no caso das controvérsias em relação
aos signos e às vestimentas no espaço público.
De outro lado, porque as
religiões que reivindicam para si uma verdade absoluta são regularmente propensas
a contestar a legitimidade das autoridades civis, que utilizam, como argumento,
a manutenção da ordem pública para limitar tais manifestações de sua expressão.
Se certos conflitos - como o
trajeto de uma procissão ou o nível de barulho tolerável em um lugar de culto -
podem parecer anedóticos (o que não significa que não possam ser violentos), há
os que tocam questões graves, como o dever de portar armas - muitas vezes
recusado por certos grupos religiosos - ou a obrigação de aplicar vacinas em crianças.
Esses conflitos são exacerbados
quando tratam de religiões cuja presença no espaço público não é aclimatada
adequadamente ou que não fazem parte intrínseca da cultura comum de uma
sociedade.
O debate sobre a aceitabilidade
de manifestações religiosas aos olhos da ordem pública é, então, misturado a
outras questões que tocam o sentimento - nem sempre claramente expresso - que
essas novas expressões religiosas poderiam contestar dessa cultura comum. Seria
uma ameaça à identidade coletiva nacional.
A junção pode então se dar
livremente entre sentimento e impulsos xenófobos e racistas, que a expansão de
fluxos migratórios, no contexto de crise econômica, tende a alimentar.
Vemos claramente essa questão nos
debates que tratam o lugar do islã na França e em todas as sociedades
europeias. E na responsabilidade direta do Estado laico de coagir essas
tendências, preenchendo plenamente seu papel de garantidor do pluralismo
religioso.
No entanto, sobre ele recai
também a responsabilidade de não ferir os princípios fundamentais que garantem
as práticas que qualquer grupo religioso possa prescrever aos seus fiéis,
crenças e comportamentos que limitem seu acesso ao exercício pleno de suas
liberdades de cidadãos e de direitos que são os seus enquanto seres humanos.
Seria necessário, para isso, editar leis específicas para enquadrar a atividade
de grupos religiosos?
Sabemos que o problema foi
evidenciado na França - especificamente em relação a grupos radicais
considerados sectários, no caso do uso de códigos religiosos na escola.
É grande o risco de que tais
intervenções objetivas possam sempre ser interpretadas como uma tomada de
partido direta do Estado na discriminação cultural de certas populações ou na
definição de formas social e politicamente legítimas - religiosamente corretas,
da religião, formas que ele não tem que conhecer.
Essa tomada de risco é um tanto
quanto inútil na maior parte do tempo, pois o direito comum fornece todo o
arsenal jurídico necessário para lutar contra as práticas religiosas não
aceitáveis.
A utilização de todos os recursos
do direito comum contra os abusos e impedimentos de religiões é a forma mais
razoável que o Estado laico tem para preservar e reforçar o papel arbitral que
é seu, manifestando cuidado estrito de respeitar a si mesmo e de fazer respeitar
a liberdade religiosa.
DANIÈLE HERVIEU-LÉGER ,
socióloga, é administradora da Escola de Economia de Paris. Foi diretora de
Pesquisa no Centro Nacional da Pesquisa Científica, na Escola de Altos Estudos
em Ciências Sociais, e diretora do Centro de Estudos Interdisciplinares dos
Fatos Religiosos.
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