“No princípio criou Elohim os
céus e a terra, e a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do
abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” (Gêneses 1: 1
-2)
Passaram-se milhares de anos
desde que esta pequena peça foi escrita. E ainda continua um mistério. Por sua
vez, os gregos não viam no tempo início e nem fim. Um grande helenista do
século XIX, Friedrich Nietzsche, pensando grego, imaginou que sendo a matéria
finita e o tempo infinito, os arranjos possíveis daquela, necessariamente,
tragicamente, inelutavelmente, fariam com que retornássemos, sempre e infinitas
vezes, ao mesmo lugar. Faremos exatamente o que já fizemos, estamos fazendo hoje
e reincidiremos infinitas vezes a fazer. Resta-nos amar de tal maneira o que
fazemos, que tal “amor fati” nos possibilite escapar deste nada que seria a
vida.
Mas há, entre os gregos e
Nietzsche, um outro grande pensador, neoplatônico-cristão, que tomando sua
herança judia, percebeu no Gêneses bíblico uma indicação não infinita, mas
finita do tempo. O tempo veio a ser, juntamente com a matéria (aquelas duas
categorias apriorísticas de Kant: tempo-espaço) criado no princípio. O tempo e
o espaço têm um princípio, o que quer dizer que são ambos são finitos. Assim,
dizer “princípio” é entender que há o tempo zero, portanto, que há um primórdio
do tempo, implicando numa origem e acontecimento no qual se fez tempo. Não
havia tempo até que houve tempo, quando a terra e céus foram criados. Algo fora
do tempo e anterior à matéria pôs a funcionar o tempo num espaço-tempo.
Agostinho atribuiu esta criação de tempo e espaço a Deus.
Santo Agostinho pensou o tempo
criado, mas buscou ir um pouco além do dizer sobre o princípio como o princípio
do tempo, pois queria saber o que é o tempo. Perguntou sobre o tempo e percebeu
o tempo como passado, presente e futuro, isto é, fluxo que escoa com o espaço,
tornando possível que concebamos arranjos das coisas. Os arranjos que foram
chamamos de passado e os arranjos que esperamos que venham a ocorrer, chamamos
de futuro. Percebeu, contudo, que o passado é o tempo que foi, que não existe
mais, o passado é um tempo que já não mais é, não mais existe. O futuro é o
tempo que ainda não é, que ainda não existe. O presente é um instante que nunca
é, pois que como instante está constrangido pelo tempo que não é mais e pelo
tempo que ainda não é. O presente é fluxo contínuo, nunca sendo, jamais
existindo. O tempo como o que não é. O tempo como privação do ser.
Mas se nos arrogamos a dizer que
o tempo se apreende como privação do ser, permitimo-nos um salto tenebroso,
diríamos, nefasto, demoníaco, diabólico. Se em suas Confissões, no capítulo X
em diante, Agostinho tratará do tempo como possibilidade de dizer o que não é,
como privação do ser, anteriormente, o bispo do Hipona nos havia dito, ainda em
suas Confissões que o mal é privação do bem. O mal não tem essência, é esta
privação essencial de bem, que nos permite compreender o incompreensível. Mas,
o que ocorreria se aproximássemos estas duas assertivas, “o tempo como privação
do ser, posto nunca ser” e “o mal como privação do bem”?
Se pudermos perceber em Agostinho
que o “ser” e o “bem” são categorias indissociáveis, permutáveis, que dizem respeito
ao mesmo, então poderemos ter um problema diante de nós. Sobretudo, pois,
dentro da chave neoplatônica agostiniana, o Deus de sua fé é aquele que
permanece sempre idêntico a si, imutável, incorruptível, não sujeito às
mudanças. Deus é o Ser em si (numa fórmula kantiana), é aquele que é, que não
muda e não está no tempo, não se coloca no tempo, mas fora do tempo, cria o
tempo e o espaço, o espaço-tempo. Se é o Deus da criação do espaço-tempo e de
tudo que pode ser compreendido neste espaço-tempo, também é o Deus que cria a
privação.
Aqui devemos nos lembrar de
Albert Einstein, e dizer que não há espaço sem tempo e não há tempo sem espaço,
assim, não é espaço e tempo, mas espaço-tempo.
Retornando a Agostinho, Deus é o
Ser, como tal é Belo, é Justo, é Verdadeiro e é o Bem, segundo a chave
neoplatônica a que faz referência o Bispo. Essencialmente o Bem, o Belo, o
Justo e o Verdadeiro são, em si, sempre idênticos a si mesmos, são Ser em si,
constantes, eternos, imutáveis. Desta maneira, o Bem é em si enquanto Ser e o
Ser é o Bem essencialmente, tanto quanto é Belo, Verdadeiro e Justo, não
sujeitos ao tempo-espaço. Mais do que isto, Ser Bom é, necessariamente, Ser
Belo, Ser Justo e Ser Verdadeiro.
Por sua vez, o tempo como
privação é carência do Ser, consequentemente, do Bem, o que o torna
identificável, enquanto carência, ao mal. O tempo apresenta-se a nós como o
mal, segundo a carência do que é eterno. A literatura bíblica apenas vai
identificar o mal como um anti-ente muito mais tarde, bem depois do Gênesis. O
mal como anti-ente surgirá nos textos bíblicos em Jó.
Podemos lembrar aquela passagem
quanto Deus estava nos céus e satanás entra de vesgueio em sua presença e
procura um modo de corromper o servo de YHWH, do Senhor. Devemos notar que
enquanto no Gêneses 1, Elohim cria o tempo-espaço, no diálogo de Jó usa-se o
tetagrama YHWH, para se apontar ao inapontável, para trazer à possibilidade
humana, espaço-temporal, o que não é dado no tempo-espaço. O tetragrama aponta
para a impossibilidade de se tomar referência no espaço-tempo, ao que está além
destas categorias, antes, é fundamento do categorial: as categorias são criação
no espaço-tempo. O mal, representado em Jó pelo verbete satanás, procura um
modo de corromper aquele homem, fazê-lo abandonar o Ser justo, conduzindo-o a
priorizar a corrupção, a passagem, o não-ser do tempo que de nós retira os bens
e a vida. A vida é o que não está no tempo, é o bem acima do tempo e que não se
limita ao espaço. Mas satanás quer que Jó a limite, reduza-a ao tempo-espaço.
Satanás quer, ainda mais. A
esposa de Jó diz: “renega teu Deus, e morre”, isto é, morra entregando-se ao
circunstancial. Mas a conversa de satanás é ainda mais interessante, pois
desenvolve-se na tentativa de mover Deus para o tempo, requerendo dele que
socorra, no espaço, seu amado servo Jó. Se satanás ganhasse a parada, moveria o
imóvel, corromperia o incorruptível, tornando o Ser em não ser, colocando-o no
tempo movediço das circunstâncias. Reduziria a vida ao espaço-tempo que é sua
negação enquanto carência radical. O que satanás pretendia dizer é: “Deus pois a
Si no tempo-espaço, o que quer dizer que tanto o tempo-espaço se divinizaram,
quanto Deus se espaço-temporalizou.”
Mas, devemos sublinhar que a
palavra satanás vai surgir antes desta em Jó (o antes é apenas referência da
sequência dos textos bíblicos como eles são organizados, que não respeitam o
tempo, mas outra construção). Satanás surge, traduzida como oposição,
impedimento, quando os israelitas saem do Egito e, pretendendo rumar à Canaã,
são impedidos por déspotas locais. Satanás surge como o obstáculo, o
impedimento para que a vida siga o caminho livre. É constrangimento, tirania,
um poder de não ser livremente. É apenas na Idade Média tardia que satanás,
como aquele que obstaculariza a vida livre se torna um ente e como tal pode ser
ator principal em filmes de holywood e fazer fortunas nas Igrejas brasileiras.
Mas vamos com calma com o andor que o demônio é um relógio de barro.
Retornando à tempo, lembramos que
o tempo é carência do ser, do bem, como tal, pode se identificar com o mal, que
é carência do bem, do ser. O tempo e o mal se co-pertencem e se interpenetram
tanto quanto o Ser e o Bem. O tempo e o mal tomam, no texto bíblico o epiteto
de “satanás”, “diabo”, “demônio”. O tempo é o diabo. O grande mistério que a
teologia nos coloca é entender como que o Bem pode criar o mal, como que do bem
advém o mal. O profeta Isaias dirá, em referência a Deus: “Eu fiz o bem e criei
o mal”. A palavra “criar” que se utiliza Isaias é o conceito hebreu traduzível
pela palavra “bará”, ou seja, fazer algo surgir sem que haja algo anterior a
ele a partir do qual este venha a existir. Lembramo-nos aqui de Aristóteles e
suas quatro causas. O filósofo grego pretende dizer que para que um artífice
possa produzir algo, há de articular quatro causas: a formal, ou seja, uma
representação imaginária da coisa (digamos, a ideia de um martelo); a causa
material, ou seja, a matéria na qual irá dar ao martelo a forma imaginada (a
madeira, o aço); a causa eficiente, ou seja, o artífice com sua competência e
os dispositivos que transformarão a matéria na forma planejada; e a causa
final, ou seja, o motivo de se fazer o martelo, o uso do martelo. O profeta
Isaias e o autor do Gêneses rompem com este imperativo causal. O mal é sem
causa, tanto a formal, pois o mal é carência do Ser, não há uma imagem, um
ser-mal de onde se imagina o mal, mas é pura carência de ser; também, não há
causa material, pois em Deus não se há carência alguma, portanto nele não há
uma “matéria” para o mal; não há, contudo e sobretudo, a causa eficiente, pois
Deus não cria como um artífice. Assim, ao não produzir, é a carência da ação
que advém o mal; por fim, o mal carece de sentido, o mal não deseja, não tem
vontade, não age motivado por qualquer anseio, a não ser tragar tudo sem nunca
se saciar de nada. O mal é pura carência e como tal foi “bará”. É este
desprovisão teleológica do mal que o torna tão efetivo, basta lembrar o
trabalho de Hannah Arendt, sobre Eichmann em Jerusalém, o mal banal.
O tempo, como o mal em sua
carência absoluta, é como que desprovido de
qualquer finalidade e por conta desta desfinalidade age como dissipador
da finalidade que há na vida, e, assim, tenciona a vida para a mudança, tão
mais acelerada quanto mais complexa se tornam os arranjos espaço-temporais da
artificialidade. O que podemos pensar sobre a vida? A vida é o que está
embrenhada no tempo, que se articula no tempo e no que o Gêneses chama de céus
e terra, isto é, o espaço. A vida escoa pelo tempo e pelo espaço, como um sopro
no barro, sem se tornar barro no tempo. A vida é o que continuamente se libera
do tempo penetrando no espaço, e se mantém além do tempo como resistência ao
tempo, ainda que o espacial se corrompa e mude. A vida como o que é livre do
tempo, resiste à passagem, permanecendo igual a si mesma. Se Deus “bará” o mal,
conforme nos fala o profeta, fez o bem, ao introjetar no espaço um tanto de si,
sem se deixar apreender pelo espaço-tempo. O sopro divino é o que perpassa o
espaço-tempo sem ser contido ali. O autor do Gêneses, então, dirá que Elohim
“bará” o “aadam”, o humano à imagem de Deus, mas também fez o “aadam” do solo,
da terra, do húmus. E ao fazer o “aadam”, soprou-lhe as narinas com a vida que
não está no barro. A criação, exemplificada por “aadam”, traz em si a vida, que
é divina, portanto inapreensivelmente incorruptível, mas que é perceptível no
tempo-espaço. Embora a criação esteja imbricada no tempo, portanto, sujeita às
mudanças e à corrupção, a vida é o que não se retém alí.
O que nos importa aqui, para além
de outras considerações, é que a vida, que se volta a escapar da morte no
tempo, torna-se complexa, e ao se complexificar se assujeita ao tempo do qual
busca escapar, encontrando, assim, a morte. É como um eco daquelas palavras:
“se comerdes do fruto do conhecimento, morrendo morrerás”, isto é, ao atentar
para os limites do tempo e do espaço, visando escapar-se-lhe dele, encontrará
neste artifício a morte que tentou não morrer. Assim é a vida em sua
complexidade e o tempo, os seres mais complexos se entregam mais à morte. A
morte é este abismo que se abre na criação e que estabelece as trevas do tempo
entre a vida e o Ser. Quanto mais a vida se complexifica, mais se torna refém
do fenômeno da existência temporal, distanciando-se do Ser, até que se aliene
totalmente da experiência de ser, entregando-se totalmente à carência, que é o
tempo. A própria vida deixa de ser vida, entregando-se ao que já foi e ao que
ainda não é, fragmentando-se no nada. A experiência da vida se torna
laboratorial, reprodutiva, massiva, matemática, industrial, trágica e inescapável:
grega. O vão entre a vida e o Ser é preenchido pelas trevas do tempo e seus
dispositivos alienantes: o poder tirânico da tragédia. A vida, por sua vez, é o
que ocorre quando abstraímos do tempo, no tempo. É o que transpassa os corpos
(o espaço) e que se liberta dos impedimentos satânicos que a desejam apreender
e a submeter à pura passagem sem sentido.
Não é por menos que na
complexidade de nossa contemporaneidade, ainda duas fórmulas temporais lutam
por uma monotonia imperiosa: do Progresso e da História. O Progresso e a
História são, cada uma a seu modo, as duas fórmulas trágicas causadas por um
organismo complexo que, tentando fugir da morte, se entregam como bodes
expiatórios ao tempo. O Progresso e a História são duas ficções narrativas que
nos dizem como os organismo complexos que somos, devemos nos organizar a fim de
realizar o trágico destino proposto como causa final. O Progresso e a História
são os dois discursos legitimadores de nossa morte anunciada, como submissão
irremediável ao tempo. Estamos todos nós, ainda hoje, como Jó, diante do tempo
que corrompe o corpo, como anúncio de uma morte, isto é, a obstrução trágica da
vida, como se esta se restringisse ao espaço-tempo. Estamos todos como Jó, face
à angústia da passagem malévola, buscando a vida que insiste em nós, lutando
contra as narrativas falaciosas que nos obrigam a dizer: maldiz a teu YHWH e
morre! Mas podemos, quem sabe, permitirmo-nos ouvir a voz que diz: “Onde
estavas tu quando Eu criei o tempo-espaço?”. Em outros termos: não é no tempo-espaço
que a vida está, mas no indizível que se repousa numa tradução impossível de
YHWH, não apreensível pelo que está limitado ao tempo e no espaço.
Em suma, o tempo é o demônio que
abita no abismo entre a vida que se quer livre e o Criador que no-la deu. Neste
abismo nefasto se introduziu, como angústia de quem se volta para olhar
amedrontadamente o nada, do absolutamente carente, o poder de impor o tempo
como dispositivo de imposição de morte. O abismo é o corte que a morte produz
entre a vida livre e o que escapa ao tempo, preenchido com narrativas
ficcionais e temerosas daqueles que temem ser esquecidos no nada. Resta o
gládio, o bellum daqueles que entregues à carência trágica, lutam por manter na
memória sua passagem efêmera, negando a vida, visando a glória efêmera. O
gládio que corta e amplia o abismo, que se preenche de tempo, que afasta a vida
pela morte. O gládio que buscando fazer triunfar a morte, quer manter viva na
memória do que ainda não é, o passado de quem matou para viver. Seria esta a
tragédia sacrificial que a Pascoa desnudou em sua falácia e violência? Se sim,
abre-se a nós, incessantemente a vida como o que permanece constante, que
diante da morte insiste em ver o fora do tempo a que podemos nos voltar.
Enquanto o tempo se acelera na complexidade, a vida se mantém inalterada na
simplicidade do Criador, que nos diz: “eu vim para que tenham vida...
Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.
Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.
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