terça-feira, junho 04, 2013

RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A FÉ EGOCENTRADA (PARTE II)

Abaixo a Parte II do texto intitulado por Marcos Nicolini*:Um esboço sobre as Religiões Cristãs desde a ideia de comunidade até a de uma fé egocentrada. Até pensamos dividir o texto em duas postagens mas, sinceramente, em todas as tentativas feitas pelo Blog, a interrupção seria abrupta e o texto perderia sua fluidez. Vale a pena ler a Parte II na íntegra. 




Pelo exposto anteriormente (parte I), podemos entender que o núcleo duro do catolicismo, pelo menos aquele do século XVI, estaria articulado sobre uma religiosidade comunitária, ainda que fortemente hierarquizada, referenciada numa tradição que remeteria ao mundo antigo; enquanto o núcleo duro do protestantismo, também aquele dos séculos XVI e XVII, sinalizaria para uma religiosidade individualizada, uma atualização de parte do espírito de alguns movimentos heréticos que até então foram silenciados. Todos os demais conceitos adotados e que visavam proteger este núcleo duro de cada um dos cristianismos, parecem advir e promover estas diferenças. Assim, Reforma Protestante e Reforma Católica apenas ressaltariam a distância nuclear entre comunitarismo e individualismo. 

Mesmo quando olhamos para a “Revelação”, a crença cristã num Deus que se dá a conhecer ao homem por meio da Palavra, podemos perceber a diferença citada. Enquanto os Católicos tomam não apenas a Bíblia, os escritos canonizados no século IV no concílio de Nicéia, e agregam a estes outros textos produzidos pela comunidade dos crentes, aceitos e respeitados por esta comunidade ao longo dos séculos, entendendo ser escritos elucidativos, conferindo um caráter coletivo, comunitário, eclesiástico à Revelação; os Protestantes segregam os escritos canônicos como sagrados, um Corpus Sagrado, e os demais escritos, mesmo os que buscam interpretar aquele, entendem como portadores de valores limitados, temporais e sem sacralidade. Portanto, para os Protestantes, a Bíblia seria um texto único, singular (Sola Scriptura). Esta canonicidade, unicidade e singularidade das Escrituras, conferida pelos Protestantes, pedirá seu preço mais adiante.

Para não cairmos no excesso de retrospectiva, tomemos alguns trabalhos contemporâneos aos séculos XVI e XVII, ou que busquem descrever os movimentos daquela época, mesmo aqueles que não tratem diretamente da religião, a fim de localizarmos esta diferença. Tangenciemos apenas alguns trabalhos e busquemos ali indícios desta distância entre comunidade e individualidade. Comecemos pela leitura proposta por Ernst Block, Thomas Muntzer, o teólogo da revolução.

Para Block (e também para Engels) Thomas Muntzer foi um comunista avant de lalettre, ao estar à frente da guerra dos camponeses em 1525. Muntzer tomou ao pé da letra o princípio do sacerdócio universal dos crentes, entendendo que no Reino de Deus não haveria hierarquias, nem dominadores e nem dominados. Para ele a Reforma deveria avançar até supressão de todo poder humano sobre o humano, questionando estas diferenciações, não apenas da hierarquia da Igreja Católica, como também a dos Príncipes. Tanto a hierarquia secular, quanto a eclesiástica seriam imposturas, quando tomadas as Escrituras como referência primária. A questão é que Muntzer faz do livre exame, assim como do sacerdócio universal, dois elementos primordiais de sua teologia e se coloca contra toda desigualdade de poder. Ao fazer isto, tenciona a Reforma de Lutero para além do limite suportável pelas elites. Martinho Lutero adota a postura do silêncio permissivo, colaborando, assim, com a nobreza que sufoca os camponeses e mata Muntzer e outros tantos. 

O que este evento nos mostra é que o núcleo duro do Protestantismo, a individualidade da salvação e da fé, o qual era protegido por um cinturão de conceitos-chave (sola fides, sola gratia, sola scriptura, soli deo gloria, soluschristus, sacerdócio universal e livre exame), estaria sob ameaça diante de uma leitura mais radical destes dois últimos conceitos. A leitura proposta por Muntzer põe a relevo a fragilidade do Protestantismo diante de possíveis ataques, tornando evidente que tal heurística, cinturão de conceitos-chaves que protege o núcleo duro, não é suficiente em si para cumprir seu papel. A Igreja da, que hoje chamamos, Alemanha passa a estar sob a guarda do Estado, institucionaliza um clero e passa a elaborar uma ortodoxia Protestante. Mas a ferida já está exposta de tal modo que a Sola Scriptura precisa da espada, do clero e de textos de apoio escritos e protegidos por este clero.

O segundo trabalho interpretativo que tangenciaremos é o de Max Weber, “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Infelizmente dá-se mais importância ao conceito de “glória a Deus intramundana”, que aponta para uma dada ética do trabalho, aquela que visa manifestar a eleição divina aos Reformados em detrimento de outros conceitos. Mas, em outras palavras, “a glória intramundana” nos fala de um indivíduo que fora eleito exclusivamente por Deus para a salvação, segundo a teologia calvinista da predestinação, o qual passa a demonstrar no mundo tal eleição, por meio de uma ética do trabalho. O cristão calvinista trabalharia mais intensamente, com maior produtividade, gerando maiores ganhos e lucros, aliando a isto uma ética estóica, isto é, abstendo-se do prazer mundano, e com isto reinvestindo o resultado de seu trabalho, não no bem-estar pessoal ou familiar, mas no próprio negócio, o que promoveria um ciclo virtuoso de acumulação de riquezas. Some-se a isto que os “não eleitos”, ou os “não predestinados”, uma vez que levam uma vida moral pecaminosa, devem ser mal remunerados a fim de não se entregarem aos prazeres mundanos. Este enriquecimento manifesta a eleição, a destinação para a salvação e destina-se a glorificar a Deus no mundo.

O que se deixa de salientar é que esta é uma ética individualizada, uma ética do trabalho que o indivíduo cristão reformado adota como parte de uma crença individual. Por outro lado, podemos perceber como nesta ética está imbricado a Sola Dei Gloria, da Sola Gratia e Sola Fides, pois a eleição por predestinação é resultado, se podemos chamar assim, da exclusiva graça de Deus, ao escolher individualmente cada um que será salvo. Uma vez salvo e crendo nesta salvação e nos valores éticos advindos daí, o indivíduo passa a viver segundo este modelo e acumula bens econômicos e sociais. Ao acumular, glorifica a Deus no mundo (intramundano). Mas, e Weber vai neste caminho, os descendentes deste cristão reformado, cuja ética do trabalho o conduziu à acumulação, não estão tão dispostos a viver uma vida tão estóica e tão voltada para a glória de Deus. E, parafraseando Weber, tornam-se indivíduos sem espírito, pouco voltados para a questão da graça divina, desinteressados na glória de Deus e crendo que se pode aliar o trabalho e o prazer. As gerações subsequentes abrem novas feridas na heurística protestante (cinturão de proteção do núcleo duro: a individualidade da salvação e da fé), mantendo, contudo intacto o próprio núcleo: o individualismo. O espírito do capitalismo seria, então, o núcleo duro da Reforma (o individualismo que congrega o trabalho e o enriquecimento), sem a heurística (a glória a Deus, a graça de Deus e fé em Deus).

Um terceiro trabalho que podemos ler, de maneira rápida, ainda que este não tenha como objeto de pesquisa questões concernentes à religião, é aquele de Benjamin Constant, “Sobre a liberdade nos antigos e nos modernos”. Neste trabalho fica salientado a diferença crucial entre um modelo comunitário e outro individualista, um da Cidade antiga e outro do Estado moderno. Contudo, pensamos que, por extrapolação, podemos salientar algumas diferenças constitutivas quando se adota uma crença do tipo comunitária tradicional e uma individualista moderna, tomando como referencia o espaço público.

Abrindo um parêntesis, há de se notar que enquanto Lutero submete a Igreja ao Estado (aos Príncipes), sinalizando para uma dimensão privada para a religião, ainda que não possamos falar do Estado como dimensão pública; Calvino procura manter a Igreja no interior da esfera pública procurando manter a influência da religião na formação do Estado e das leis. Os modelos eclesiásticos entre os Protestantes não são homogêneos, mas guardam diferenças.

Retornando a Benjamin Constant, podemos notar a diferença dada por este liberal à liberdade que gozavam os antigos (Atenas e Roma) e aquela que os modernos de sua época estavam procurando. Segundo Constant os antigos entendiam que um homem livre era aquele que era cidadão de uma cidade livre e sua liberdade era exercida como participação dos negócios públicos. Em outras palavras, um homem livre era aquele que vivia numa cidade que se organizava sob leis que os próprios cidadãos prescreviam para si e tal liberdade consistia na divisão do poder social entre todos os cidadãos. Resumindo, somente se pode ser livre ao viver numa cidade que faz suas próprias leis e esta constituição da cidade se faz pela divisão do poder entre os cidadãos. Ou seja, a liberdade dos antigos é uma constituição da Cidade e não do indivíduo.

Mas, segue Constant, a liberdade dos modernos tem como referencia o indivíduo, e subtendia-se a liberdade como desimpedimento, chamada de liberdade positiva. A liberdade é o direito de fazer, sem impedimento, aquilo que se há de fazer. Claro que podemos ir além neste conceito e pensar nos limites que uma comunidade dará à liberdade individual, e nos deveres que a civilização imporá sobre cada um de nós. Mas, a liberdade que a modernidade liberal proporá é a de que o indivíduo goze seus prazeres privados. Em Hobbes e Locke, mais acentuadamente, o que está em jogo é a ampliação do gozo dos bens privados por meio das garantias dadas pelo Estado. Assim podemos resumir que a liberdade dos modernos é a do indivíduo por meio do Estado, enquanto dos antigos é a liberdade da Cidade pela divisão do poder pelos cidadãos. Citamos, apenas de passagem, a fala de Constant: “A independência individual é a primeira necessidade dos modernos; por conseguinte, não se pode pedir o sacrifício dela para estabelecer a liberdade política.”

Uma vez que a modernidade referencia-se na individualização, podemos perceber o distanciamento que esta referência assume frente a uma religião do coletivo, que adota como liberdade do indivíduo a liberdade pela Igreja, a salvação do indivíduo como salvação na Igreja, a sabedoria do indivíduo como sabedoria de um conjunto de textos produzidos e guardados pela comunidade eclesiástica. Por outro lado já encontramos no Protestantismo fissuras produzidas por movimentos internos a este Protestantismo. Podemos perceber uma heurística, cinturão de proteção do núcleo firme, frágil e que requererá constantes transformações. A religiosidade Protestante cismática atravessará os séculos transformando-se e buscando referencias para um conjunto frágil de proposições. Por um lado enfrentará uma Igreja Católica referenciada em tradições, ou seja, numa comunidade secular de crenças, por outro lado enfrentará a modernidade em diversas frentes, tanto política, quanto científica, e por fim enfrentará sua tendência cismática e individualista.

*Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

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