sábado, junho 15, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA (PARTE III)



Parece-nos que quanto para mais distante olhamos, mais fabuloso e permeável à crença nos torna a descrição. Contudo, quanto mais nos aproximamos de nossa contemporaneidade, menos visível se apresenta a nós os fatos e a descrição se torna plural e conflituosa, arredia ao assentimento. Tanto mais quando buscamos dialogar em torno desta Babel que é a religião cristã ocidental.


Estamos girando em torno de um acontecimento e desenvolvimentos subsequentes e provenientes deste, a fim de nos achegarmos às tensões de nosso tempo. Estamos caminhando ainda em passos curtos, mas não em demasia. Estamos falando de Martinho Lutero que ousou expor diante do mundo as suas noventa e cinco teses, cujo sentido foi apontar para Roma, a Igreja sediada nesta cidade, e fitando o Pontífice, dizer, ou, não dizendo declarar: você não está falando a verdade. A história do cisma religioso do Ocidente é a história do fim da verdade. Não apenas de seu ocaso, mas de sua desfundação, a história da deslegitimação do poder. O cisma da Igreja do Ocidente, em Igreja Católica Romana e Igreja Protestante, é o momento em que a unicidade da verdade é rompida e nos encontramos diante de duas verdades, e a partir dali, muitas verdades, nenhuma verdade. 

De um lado a Igreja que se forma a partir do segundo século de nossa era, tendo como chave o bispo romanode nome Clemente e que escreve uma epístola à igreja de Corinto, promovendo um movimento desde a ekklésia grega até a Igreja romana. De outro lado o teólogo agostiniano de nome Martinho, no século XVI, que diz que a Igreja e seu clero não tem o direito de vender indulgências, pois não é ela a guardiã da salvação, sabendo que o “justo viverá da fé”. Ou, em outras palavras, a salvação não é uma propriedade da Igreja, mas, sendo graça de Deus em Cristo, deverá ser apropriada por fé pelo indivíduo que foi justificado pelo próprio Deus. Este pequeno movimento da fé põe dúvida na verdade apregoada nos últimos mil e quatrocentos anos.

A Igreja Católica Romana construiu um método de produção de discurso verdadeiro. Seu método consistia na incorporação de métodos tradicionais de composição. Tal método tradicional referenciava-se na especulação grega, em certa matriz especulativa dos helenos, e na piedade romana, tendo como centro regulatório o texto canônico, a Bíblia. A especulação grega a que nos referimos é aquela dos filósofos neoplatônicos do segundo e terceiros séculos da era cristã. Tais filósofos atualizavam a filosofia iniciada por Platão, especulando sobre o Mundo das Ideias e suas consequências, mas adotavam, em certa medida, a cosmologia aristotélica. Em tal cosmologia, o Universo é dividido em duas regiões, a sublunar e supralunar, composta por sete esferas concêntricas e em movimento circular e uniforme. Sabendo que na esfera mais exterior do Cosmos estava a esfera da estrelas fixas, que determina a fronteira e fechamento deste Universo, e no seu interior as esferas dos planetas, do Sol e da Lua. O espaço supralunar é homogêneo e formado pelo éter, não passível de mutações, alterações, começos e fins: eterno. A região sublunar é formada pela Terra e seus habitantes, os quais são constituídos por quatro elementos: água, ar, terra e fogo. Cada um destes elementos tem seus movimentos segundo sua qualidade: o fogo e o ar sobem, a água e a terra descem, ocupando, assim, seus lugares de repouso.

Na região supralunar há homogeneidade e eternidade, segundo a qualidade do ser de cada coisa, isto é, incorruptibilidade. Todos os seres (as estrelas, os planetas, o Sol e a Lua) se movem segundo o movimento circular e uniforme, o que lhes conduz sempre a retornar a seus lugares de origem. No centro deste Cosmos está a Terra imóvel. Acima da esfera das estrelas fixas encontra-se o Motor Imóvel, que move as estrelas, mas não é movido por nada. Tal Motor Imóvel é considerado por alguns estudiosos, o deus de Aristóteles. Nesta cosmologia há de se ressaltar duas coisas: primeiro que o Motor Imóvel move a esfera das estrelas fixas, a qual transmite movimento aos planetas, o Sol, a Lua, e esta transmite movimento aos seres que estão na Terra, por sua vez imóvel. Segundo, movimento, de acordo com Aristóteles, é qualitativo e não quantitativo, não podendo ser medido em metros, anos luz, ou angstroms. Um ser se move para seu lugar de repouso, assim, Aristóteles considera movimento tanto o ir de um ponto ao outro, quanto o nascer, crescer, dar cria, mudar de forma, morrer, etc. O movimento na Terra dos seres vivos e dos minerais são qualidades transmitidas desde o Motor Imóvel por meio dos Planetas, o Sol e a Lua. A alma é quem possibilita o movimento, por isso, ainda hoje, dizemos que algo é animado.

Os seres, então, ocupam um longo espectro que vai desde o Motor Imóvel até a matéria-prima. Neste momento da cosmologia neoplatônica, Aristóteles desvanece e Platão é posto em um plano mais aparente. No cume desta cosmologia esta o Ser, isto é além do Ser, e na base está o não-ser, entre ambos está a Grande Cadeia do Ser. Há apenas um encadeamento necessário e neste todos os seres possíveis de serem pensados, de tal modo que a Grande Cadeia do Ser é contínua, imutável e plenamente preenchida por meio de uma hierarquia segundo a proximidade ao ápice. Quanto mais acima menos matéria e mais Ser, quanto mais abaixo menos Ser e mais matéria. Os seres supralunares não têm matéria, mas são formados de material sutil, o éter, mas os sublunares são compostos de matéria e forma, isto é, de uma ideia que da forma à matéria. Cada “coisa” desta Grande Cadeia do Ser ocupa um lugar preciso, não podendo sofrer mutações, pois ao mudar deixaria um espaço vazio (e no Cosmos antigo não existe vácuo) assim como colidiria com outra “coisa” que já estaria ali. Tudo o que há, há desde sempre e sempre será o que sempre foi. 

Para os neoplatônicos o além do Ser é o UNO o qual contemplando a si mesmo contempla o Ser. Como um Sol que ardendo em calor e brilho ilumina-se e esquenta a si mesmo, assim é o UNO. Mas como um Sol que ao arder em calor e brilhar, irradia para fora de si luz e calor, assim o UNO emana como Inteligência. Tal Inteligência, ou Nuos, pensa os seres em particular, cada ser: o ser estrela, o seres planetas, o ser Sol, o ser Lua, o ser Terra, o ser humano, o ser cavalo, o ser sardinha, o ser limoeiro, etc. Ao pensar os seres o Nuos traz à existência o que é, por meio de uma segunda emanação que é a Alma do Mundo. A Alma do Mundo anima a matéria dando-lhe formas variadas segundo cada ser. Assim como quanto mais distante de Sol menos luz e calor se há de ter, assim também quanto mais distante do UNO, menos animado será a matéria. Desta maneira será constituída a Grande Cadeia do Ser. O ser humano ocupa a posição intermediária nesta cadeia, sendo pensado como animal racional, em que a matéria e forma se equilibram.

É neste sentido que Pico dela Mirandola nos escreve em 1450 d.C.: decretou o ótimo Artífice que àquele ao qual nada de próprio pudera dar, tivesse como privativo tudo quanto fora partilhado por cada um dos demais. Tomou então o homem, essa obra do tipo indefinido e, tendo-o colocado no centro do universo, falou-lhe nestes termos: A ti, ó Adão, não te temos dado nem uma sede determinada [...] precisamente para que o lugar, a imagem e as tarefas que reclamas para ti, tudo isso tenhas e realize, mas pelo mérito de tua vontade e livre consentimento [...] Tu, porém, não estás coarctado por amarra alguma. Antes, pela decisão do arbítrio, em cujas mãos depositei, hás de predeterminar a tua compleição pessoal. Eu te coloquei no centro do mundo, a fim de poderes inspecionar, daí, de todos os lados, da maneira mais cômoda, tudo o que existe. Não te fizemos nem celeste nem terrestre, mortal ou imortal, de modo que assim, tu por ti mesmo, qual modelador e escultor da própria imagem segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a forma que gostarias de ostentar[...] Ó Suprema liberalidade de Deus Pai, ó suma e maravilhosa beatitude do homem!

Tendo passado brevemente por esta cosmologia básica, devemos relembrar como o conhecimento é possível. A partir deste ponto, retomar a piedade romana e como a mistura do helenismo, do romano e do cristão se unificam como Igreja Romana. Mas vamos de vagar.

*Terceira parte do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

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