sábado, junho 29, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDÉIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE IV


Já Agostinho nos fez saber que os antigos articulavam de maneira coesa e co-dependente três teologias: a teologia mítica, a teologia política e a teologia natural. Diferentemente como pensamos as questões da ciência, da política e das narrativas em nossa contemporaneidade, os antigos articulavam tais “teologias” de maneira integrada, sem cisões ou fendas. Não fragmentavam em departamentos distintos e pouco permeáveis, tais saberes. As teologias míticas tratavam dos relatos sobre os nascimentos dos deuses, dos homens buscando legitimar as coesões político-sociais; as teologias políticas das relações entre os deuses e os homens, e entre os homens e homens na cidade; as teologias naturais entre os deuses e o mundo natural, certa cosmologia. Assim como não haviam regiões de saberes autônomas, ou, apartadas uma das outras, também os deuses, os homens e a natureza não formavam três regiões incomunicáveis, distintas. A natureza, para os gregos, era tudo o que existe, em outras palavras, os deuses faziam parte da natureza.



Conforme pudemos ver anteriormente o universo, segundo a proposição aristotélica e posteriormente neoplatônica, era constituído por esferas concêntricas e a mais exterior era a do Motor Imóvel, ou, o Deus de Aristóteles. O Deus de Aristóteles não era transcendente ao Universo, isto é, externo e diferente deste, mas estava na Natureza, na ‘physis’. A consequência será percebida mais tarde, quando a visão de mundo medieval agostiniana-neoplatônica for abalada pelo aristotelismo que penetrará na Europa pela via da Península Ibérica com os mouros. Por hora precisamos apenas marcar este elemento grego-romano nas três (uma) teologias. 


Salientamos que embora sejam mítica, política e natural, são, sobretudo (ou, sob-tudo) teologia. São discursos com pretensão de verdade não apenas sobre os deuses, e, mais tarde, sobre deus, mas permeados pela divindade. O Universo estava repleto de deuses. Uma outra consequência desta co-dependência dos relatos míticos, da política e da natureza com a teologia, é que surgirá na Grécia Antiga um conjunto de pensadores que procurarão razões (logos) sem tomarem referência na teologia. Suas proposições serão banidas da Cidade não pelos fundamentalistas cristãos, que somente surgiriam dois mil e quatrocentos anos mais tarde, mas o foram por Platão, Aristóteles (e seus discípulos) e pelos neoplatônicos. O que nos cabe neste momento é sinalizar para o fato que o ateísmo, se é que podemos chama-lo assim sem o risco do anacronismo, surge como possibilidade na Grécia Antiga como busca de um discurso, ou, explicações e narrativas sobre a natureza e a política sem o uso, ou sem referência às divindades. Portanto, buscar a verdade sobre a Política e a Physis sem que se faça Teologia. Mas a Teologia sobreviverá em Platão, em Aristóteles e seus discípulos, sem o apelo à transcendência, isto é, sem que se pergunte pela existência de algo que seja fora da Natureza e uma divindade suprema que exista além dela.

Outro elemento importante que precisamos ressaltar é aquele que nos permite pensar o conhecimento, e este dado pela razão, antes, pelo logos, pelo discurso com pretensão de verdade. Em Aristóteles, por exemplo, o conhecimento era pensado como algo que nos era dado do mundo para o homem. O intelecto humano era entendido como passivo e as coisas do mundo marcariam este intelecto passivo, conferindo-lhe a forma, ou, usando uma palavra mais contemporânea, ainda que imprecisa, informando. Dizer que um certa coisa é um “cavalo”, ou, dar o nome de “cavalo” aquilo que está diante de mim, é dizer o que é aquilo, em outras palavras, o que confere forma à matéria. Para Aristóteles encontramo-nos com a essência de uma coisa nela mesma. Para este filósofo grega, a forma e a matéria são simultâneas e o saber está na experiência passiva daquele que está diante do “ente”, daquilo que se apresenta aos sentidos.

Em Platão, o nome de uma coisa, quando determinado com exatidão, diz o que é a ideia da coisa. Ao olharmos para um “cavalo” devemos buscar nele a ideia que resiste mesmo quando este cavalo não mais estiver diante de nós. A ideia é eterna e antecede ao ente que está diante de nós. Saber está é saber o nome da coisa, e este nome representa a coisa. Representar é tornar presente pelo nome aquilo que está ausente. Não nos interessam aqui os detalhes da teoria do conhecimento dos antigos, a não ser que este conhecimento vem desde fora até o intelecto humano, o qual será marcado, informado com o ser. O intelecto humano deve espelhar o mundo, ou, como se o intelecto fosse um museu, ter um conjunto de formas (esculturas, quadros, etc.) que represente o mundo. Quanto mais o homem contempla o mundo, mais seu intelecto será um “espelho” deste mundo. Para tanto o homem deve ter um atitude contemplativa diante do mundo. 

Contemplar o mundo é fazer teoria. Duas palavras que têm uma conotação grave desta relação exterior com o conhecimento. Contemplar traz a ideia de um adorador diante do templo e que se deixa ser um com a divindade que ali reside e que tem diante dos olhos. Teoria também traz este conceito divinatório, pois teoria é ter a visão dos deuses, isto é, ver o que os deuses veem na mesma medida que os deuses são vistos.A visão Absoluta está entremetida nesta teoria contemplativa. Conhecer é participar do Absoluto. Mas este Absoluto não é apenas o da teologia natural, mas a íntegra da teologia em suas três modalidades: natural, política e mítica.

Os deuses que movem o cosmos ordenam a cidade, e estes movimentos de ordenação são narrados miticamente. Platão, por exemplo, questiona Homero não por este narrar os deuses e os homens, mas porque estas narrativas não cooperam com um tipo de Cidade que Platão julga ser justa. De uma justiça que Platão julga devemos buscar. A Cidade idealizada por Platão não nega os deuses, mas visa racionaliza-los, submetê-los à razão, ao logos, ao discurso com pretensão de verdade. Para Platão a ideia de justiça não está na Cidade, mas deve ser contemplada por um filósofo-rei. Assim, também a teologia, em Platão, deve estar submetida ao Mundo das Ideias: do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro. Mais tarde os neoplatônicos proporão a ideia do Uno,aquele que se auto contemplando realiza esta Teoria do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro. Mais adiante ainda, os cristãos tomarão o Uno neoplatônico e o chamarão de Deus Pai.

Contudo, em Aristóteles a justiça não é uma Ideia que está acima da Cidade, a qual deve ser teorizada, mas algo que há de ser constituída na própria Cidade. Digamos que o trabalho de Platão favorece mais às elaborações transcendentais e a de Aristóteles as imanentistas. Em outras palavras, Platão permitirá, com menos trabalho, que se pense posteriormente num Deus Uno e que é além da Natureza, para fora dela, transcendente; mas, Aristóteles exigirá um trabalho mais penoso e menos suportável, e que reclamará sempre por uma divindade na Natureza. Enquanto Agostinho se afastará de Aristóteles e se referenciará nos Neoplatônicos, Tomás de Aquino buscará uma leitura cristã de Aristóteles, cujas limitações e fragilidades não demorarão tanto tempo para emergirem.

Aristóteles procurará olhar as Cidades, suas constituições, e pelo trabalho intelectual de visualização destas, propor uma Política. Platão criticará todas as formas de Cidades (oligárquica, monárquica, democrática e tirânica) e procurando, por meio da razão, contemplar a Ideia do Justo, do Belo, do Bom e do Verdadeiro, teorizar uma Cidade. A Cidade de Aristóteles será sempre resultante de sua própria constituição, enquanto a de Platão, segundo ele mesmo, não será jamais realizável, não porque sua ideia é imperfeita, mas porque a ação humana sempre será imperfeita. Não por acaso Aristóteles será esquecido no Ocidente até o século XIII, enquanto o pensamento de Platão ecoará pela via neoplatônica-agostiniana. Não por acaso Platão ecoará em toda utopia, desde Thomas Morus em diante, até mesmo em Marx. Mas, a despeito destes trabalhos filosóficos, coexistia na Antiguidade o forte imbricamento entre religião-política-natureza-mito.

A despeito de todo este esforço teórico, o trabalho filosófico esbarrava numa cultura, numa paideia. A Cidade Antiga Grega e Romana, por sua vez, movia-se (podemos dizer sem que cometamos erros grosseiros que este mover traz o sentido aristotélico do termo) em torno das estruturas religiosas. O termo romano “pietà” sintetiza esta estrutura. A piedade romana era a guarda das tradições da cidade, da memória dos antepassados e dos deuses. Como tradições entendia-se a língua, a propriedade, a religião, as leis. A religião diz respeito aos templos, aos ritos, aos mitos, ao fogo sagrado e ao lar. A propriedade, aquilo que é próprio de uma “gens” (família, povo), diz respeito ao que foi legado pelos antepassados, que ali habitam e no qual estava o lar, o lugar onde o fogo eterno nunca deveria deixar apagar e diante do qual se apresentavam os sacrifícios. Via de regra a língua comunicava uma “gens” aos deuses, ou, como podemos ver entre os hebreus, a língua deles era a língua de YHWH e que aquele povo preservava como língua sagrada. Os Gregos não chegavam a tanto, mas consideravam bárbaros, pessoas destituídas de razão, todos os povos (“gens”) que não falavam a língua dos helenos. As leis, para os hebreus, foram dadas por YHWH a Moisés no alto do Monte, mas para os helenos a lei se obtinha na teologia mítica. Os escritos homéricos, por exemplo, não apenas falam dos feitos heroicos dos homens e dos deuses, mas relatam os valores que estavam em jogo, as estruturas políticas em fundação.

Contudo, ainda que deuses e homens participassem da Natureza, a natureza dos deuses diferia da natureza dos homens, assim como a natureza humana diferia da natureza dos demais seres animados (animais e plantas) e dos seres inanimados (terra, água, ar e fogo e tudo que por eles era constituído mas não tinham alma, ou seja, não tinham em si o princípio de movimento). Uma vez que os deuses e os homens tivessem naturezas distintas, podemos perceber que são seres separados. Assim encontramo-nos diante da ideia de sagrado e profano: o sagrado seria o que estivesse reservado para uso dos deuses e o profano seria o que estivesse reservado para o uso cotidiano dos humanos. Há um corte! A religião se colocaria, então, neste corte, o qual menos significava religare, ou, aquilo que buscaria estabelecer pontes, criar ligações, e mais significava cortar, fender, dividir, religio. Em certo sentido, mais do que se colocar no corte, a religião pode ser pensada como o corte: sagrado/profano.

No centro de uma religião pensada como corte está o sacrifício, e deste a tragédia. Pelo menos nos gregos e nos romanos a tragédia organizava a Cidade. Acreditavam aqueles povos que se podia prevalecer sobre o caos e a desordem por meio do sacrifício de um bode expiatório. A morte de um inocente (bode expiatório) que fizesse convergir (catarse) o ódio (timos) de toda a população seria suficiente para apaziguar a cidade, restaurar a ordem e afastar o caos. Conforme nos dirá Derrida (filósofo francês) o canto trágico (do teatro grego) tanto representa o grito fúnebre do bode expiatório no sacrifício, quanto o júbilo festivo da população que se alegra. O cosmos mantém sua ordem, então, a partir da tragédia, o sacrifício necessário de um bode expiatório, a ordem política é restaurada, tudo conforme os mitos. Homero é pródigo em conjugar estas teologias e integra-las. Não é por acaso que a Guerra de Tróia há de começar com o sacrifício de Efigênia em Tauris e assim garantir a vitória dos helenos sobre a Ilia (Tróia).

Mas, devemos salientar: Platão enfrenta a tragédia e procura tirar os poetas da Cidade. Não qualquer poeta, mas os poetas trágicos, nomeadamente, Homero. O livro da República (de Platão) inicia-se com Sócrates não participando de um evento cívico, ou seja, religioso. Também devemos salientar que a República apenas foi referenciada pelos escritores medievais, ou, numa releitura cristã aplicada à Roma do século XIII. Por outro lado a democracia ateniense convivia sem problemas com a religiosidade grega. O que desejamos dizer é que Platão coloca no seio da Cidade grega uma tensão oriunda do confronto à tragédia, mas sem abolir os deuses, antes, submetendo a teologia à razão, por meio da contemplação, pelo filósofo-rei, do Mundo das Ideias. Em certo sentido a teologia mítica é abandonada em prol da Razão, do discurso com pretensão de verdade o qual subordina o discurso sobre os deuses, o discursos político e o discurso natural, a partir de uma atitude contemplativa. O saber continua do mundo para o intelecto humano, articulado pela Ideia do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro.

*PARTE IV do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

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