domingo, julho 21, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VII



No ponto em que estamos desta nossa leitura perspectivada, podemos nos deixar levar por inúmeras tentações. Podemos ser levados pela tentação de uma crença progressista da História. Também podemos ser levados pela tentação de uma crença numa lógica dialética da História. Estas duas vias nos fazem acreditar num movimento determinista e determinado para a história, como se um Espírito a conduzisse transmutando-a em História.Um a priori e um fortiori conduzindo os fatos. Por uma terceira via, podemos ser levados pela tentação de uma crença em ciclos históricos que surgem, conhecem sua maturidade e se esgotam, com se fossem acontecimentos autóctones e sem legado. Estas três tentações se nos pode ocorrer quando pretendemos nos mover desde o Peloponeso até a Itália.



A crença progressista, tanto da história quanto da ciência, apresenta-nos o mito de que a humanidade acumula conhecimento, antes, o conhecimento se dá por acumulação. A ciência é um ser guloso e obeso como um buraco negro. Ontem sabemos menos do que hoje e amanhã saberemos ainda mais. A ideia aqui presente é que não há perda e nem transformação do conhecimento ao longo da história. Some-se a isto o mito, aquele que poderemos ter uma clareza maior quando passarmos pelo neoplatonismo e pelo gnosticismo cristão, de que a verdade é como se uma cebola tivesse um núcleo. Progressivamente vamos descascando a cebola, isto é, retirando película a película que cobriria o núcleo, até que este fosse plenamente descoberto. Neste sentido, o progresso científico e a descoberta científica são os dois lados de uma mesma moeda. Assim, a teologia mítica, a teologia política e a teologia natural possuem um núcleo metafísico duro, um fundamento último que num processo metodológico racional será desvelado e revelará a verdade clara e distinta. Como diria o apóstolo Paulo: hoje sabemos em parte, mas amanhã veremos face a face. Em outras palavras, a verdade está oculta, velada, mas a razão humana progressivamente irá, por uma metodologia científica, desvela-la, retirar-lhe o véu. Podemos, assim, nos tranquilizar, pois o fim, que já sabemos de antemão,e apesar dos problemas no transcurso há a garantia, será alcançado e nos levará a uma plena felicidade. É o legado grego-cristão das palavras de Jesus: conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Mas as cebolas não têm núcleo, apenas finas lâminas.



A lógica dialética da História também parte da crença, porque não dizer religiosa, de que há um processo histórico inexorável movido pelo Espírito. Joaquim de Fiori (1132-1202), místico cristão do séculoXII inspirou, em certo sentido, não apenas Hegel como, ainda que indiretamente, Marx. Joaquim foi Abade em Fiori e propôs que a história da humanidade se processaria em três eras: a do Pai, de acordo com o Velho Testamento, de um Deus poderoso, vingador e temível; a do Filho, de acordo com o Novo Testamento, de um Deus amoroso e revelado entre nós; a do Espírito, com a fusão do indivíduo e da ordem. A sociologia positivista de Auguste Comte também parece ser herdeira deste pensamento religioso, ou, é uma expressão secularizada da mítica de Joaquim, que encontra na era da razão um mundo sem a superstição religiosa. Há uma forte crença escatológica nesta elaboração, isto é, uma racionalidade da História que a faz culminar num evento último. Evento este que faz dissipar toda ordem tradicional instituída em prol de uma ordem mais justa. Desta escatologia hegeliana podemos ter dois caminhos para a História: se apostarmos num Espírito diluído entre todos os homens, como mônadas, podemos pensar no individualismo anarquista,quando aliado à supressão da propriedade privada; se apostarmos num Espírito manifesto no Estado, o lugar irradiador do poder, então teremos outros dois caminhos: o comunitarismo com supressão da propriedade privada, pela via marxista, ou o nacional socialismo, um tipo de Estado marcado pelo mito de origem, dos deuses.


Até aqui pensamos seguindo uma imagem do tempo linear, do tipo agostiniano, isto é, neoplatonismo cristianizado. O tempo como sucessão de instantes homogêneos, onde o presente é um instante entre o passado e o futuro. Cada instante de tempo é absolutamente idêntico ao anterior e ao próximo, mas é marcado pela História. Não é assim, porém, no pensamento antigo antes do cristianismo. Na Grécia e mesmo em Roma o tempo era pensado ciclicamente. Platão e Tulcidides pensam os regimes políticos passando da Oligarquia, Aristocracia, Democracia e Tirania e retornando, numa sucessão cíclica. Platão, na República, pensará um modo de sair deste movimento, posto que ele está olhando para as estrelas, mas busca além delas um Mundo não sujeito à corrupção. Filho desta concepção antiga são as crenças em ordens que respeitem ciclos bem definidos de surgimento, crescimento, amadurecimento, declínio e morte. Conforme dissemos acima, parece que estes ciclos surgem do nada e ao nada retornam, não sendo tributários de nenhuma tradição anterior e nem deixando qualquer legado posterior. Como se seres alienígenas tivessem deixado na Ilha de Pascoa crianças que conseguiram sobreviver e inventaram uma maneira de viverem em comum, e ao fim de um tempo aquela civilização tivesse deixado de existir. Não é assim que ocorre.

Embora estes crenças estejam bem arraigadas em nosso senso comum, podemos ver suas limitações ao exigirem de nós que nos abstenhamos de questionar a capacidade de explicação e de previsão, antes, a sua baixa aderência ao dado empírico e a impossibilidade de prever fatos futuros. Ao exigirem de nós fundamentos inquestionáveis. Precisamos, então, de um modelo que incorpore a imprevisibilidade de futuro, mas que nos permita perceber o eco do passado no presente. Mas do que a imprevisibilidade de futuro e eco de passado, o modelo deve nos fazer perceber que a história não se dá por necessidade, mas por linhas de força e arranjos. Podemos, então, tomar algumas metáforas e perceber como elas nos permitem compreendera história em seu dinamismo, em que o passado e o futuro sejam-nos como matérias-primas na construção de mundo, mas que esta construção de mundo não está subordinada a qualquer Espírito, princípio ou eterno retorno.

Martin Heidegger em seu texto “O que é uma obra de arte” nos diz (aqui apenas buscamos uma paráfrase) que na passagem do grego para o latim perdeu-se muita coisa. Há muita tensões nestas palavras, mas antes de aborda-las, tomemos uma primeira metáfora do próprio Heidegger. Usando a metáfora do círculo, nos diz o filósofo que ao buscarmos o conhecimento sobre algo não o fazemos arbitrariamente, mas já interessados por um interesse que não nos pertence, não é nosso, não o produzimos. Interesse que para ele nos remete ao “meter-se em meio à coisa”. Interessamo-nos por algo, passamos a conhece-lo, transformamos o objeto conhecido e nos transformamos, e retomamos ao ponto do interesse, fechando o círculo.

Mas esta metáfora poderia nos sugerir que em tal círculo haja um centro, um lugar fixo e que fixe o movimento a partir dele, tal qual para os antigos o Universo girava em círculos ao redor de um ponto fixado: a Terra. Nesta caso, não mais a Terra, mas o sujeito. Mas aqui é que devemos tomar a segunda metáfora, aquela apresentada por Jacques Derrida. O filósofo francês nos fala que este círculo é como uma elipse, isto é, quando completamos o círculo o centro sofre um deslocamento, de tal modo que não retornamos ao ponto inicial. Não há fixidez ou fixação do sujeito do conhecimento. 

Mas para percebemos as consequências desta segunda metáfora sobre a primeira, devemos tomar uma terceira, e neste caso antecessora das duas primeiras, mas que nos auxilia no entendimento da ampliação que resulta destas. Nicolau de Cusa, cardeal da Igreja no século XV escreveu a “Douta ignorância”, em que defende a ausência de centro fixo no Universo. A defesa que ele faz desta tese é simplesmente radical. Hoje se quer damos conta da radicalidade daquele pensamento, já que para nós o Universo é descentrado. Diz-nos o clérigo que para traçarmos uma circunferência precisamos de um ponto central e de um raio, assim a circunferência é a curva em que todos seus pontos estão equidistantes do centro a uma distância igual ao raio adotado. Então, acrescenta, que se estivermos pensando numa circunferência de raio infinito, todos os pontos estarão a uma distância infinita do centro, e mais ainda, o raio será tão infinito quanto o diâmetro, e mais ainda, que qualquer lugar neste Universo infinito estará a uma distância infinita da circunferência que o inscreveria. Portanto, qualquer lugar deste Universo é o centro do Universo, logo não há centro de um Universo infinito. Nicolau não apenas desfaz a ideia de centro do Universo, aquele que era ocupado pela Terra, como desfaz da ideia de um Universo finito e fechado, como queriam os gregos, os romanos e os cristãos.

A consequência, então, para nós é que a história não teria um centro sobre o qual giraríamos, mesmo que este centro fosse passível de deslocamento. Isto não significa que não possamos adotar um centro, mas este não é universal, válido sempre e para qualquer um. O centro que adotaremos é um centro que permite-nos dar sentido a nossa narrativa e permite-nos apenas trazer certa coerência, mas em momento algum determina a verdade histórica. Interessamo-nos pelo movimento no tempo e que chamamos de história, mas este interesse reclama de nós um conjunto de ferramentas e instrumentos de análise, isto é, referências, também suscita objetivos e métodos. Este interesse põe em questão s ferramentas, os instrumentos, os objetivos e os métodos, fazendo deslocar o centro adotado e o próprio objeto e o pesquisador.

Em termos de uma possibilidade histórica, diríamos que os romanos fazem uma leitura dos gregos, segundo seu próprio centro, transformam os gregos segundo seus interesses e recolocam-nos um grego latinizado. É neste sentido que lemos a frase parafraseada de Heidegger: a passagem do grego para o latim há perdas. A leitura que Cícero, Virgílio e outros fazem dos gregos, não é grego. Assim como a leitura que os pais da Igreja cristã fazem dos escritos do Velho Testamento, do Novo Testamento, dos gregos, dos romanos e dos neoplatônicos, não pertence àqueles escritos. O que nos parece é que o pensamento Histórico determinista, quer segundo a crença no Progresso, quer na Luta de Classes, quer na circularidade, ou na degenerescência trágica, ou outro método que pretende o controle e a previsibilidade do futuro, determina uma dada epistemologia. Epistemologia esta que se funda num dado último e incorruptível, numa verdade. O que pretendemos é ver na história esta possibilidade criativa e incontrolável.

Feita esta passagem rápida podemos voltar aos nossos antigos. Podemos fazer uma leitura que aproxima e distancia os gregos e os romanos. Podemos começar com Homero e Virgílio, depois Platão/Aristóteles e Cícero, e por fim Catulo.

Marcos Nicolini é Bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

Nenhum comentário: