domingo, julho 14, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VI


Aristóteles em sua arte poética nos diz que o homem é um animal que imita. Talvez nunca consigamos sair deste círculo desvirtuoso. Quando Jesus, reconhecido pelos seus primeiros amigos como Cristo, isto é, Messias, disse, “se lhe derem numa das faces, ofereça a outra”, estava apontando para a quebra do ato mimético, da violência mimética. Em lugar de proceder tal qual o agressor retribuindo a violência com a violência, e com isto perpetuando-a, Jesus, o Cristo reconhecido, diz que da violência somente se sai pela não violência. Ora, estava ele criticando abertamente a lei de Moisés, para quem “olho por olho” era a regra referida. Mas esta regra não o era apenas no interior das fronteiras hebraicas, mas era regra geral dos povos que hoje imitamos: Egípcios, Gregos, Romanos, Persas, etc. Nossa teologia política, mutatis mutantis, nossa filosofia política ainda segue a regra mimética da violência, ainda que tenhamos dito que não.

O modelo político grego tem intrigado muitos estudiosos por ser, aparentemente único na história da humanidade. A democracia, o poder de muitos como nos falam os antigos, contudo não é uma descoberta grega, mas está presente, por exemplo, nos povos nórdicos, os chamados vikings. Também é possível pensarmos em povos sem Estado em que os membros destas populações organizam a vida em sociedade sem a existência de um poder central, como foi o caso de povos aborígenes no Brasil, como nos conta Pierre Clastres (A sociedade contra o Estado). Porque então o modelo grego e romano nos intriga? Não saberia responder, ainda que tenha colocado a questão. Mas é possível que a questão mimética, traduzida como tradição, possa ser uma chave.

Lembremos que Aristóteles relata seu mito político, no qual a Polis, a Cidade é quando um “oikos” (uma casa) se junta a outro “oikos”. Qual a questão ai? Cada “oikos” tem seu poder fundado no poder do “despotes”, ou, do pater família, ou ainda, do “basileus”, um rei em sua casa. Se no “oikos”, na dimensão privada de sua casa o pater família pode exercer seu poder despótico como “basileus”, ao encontrar-se com outros “basileus” ele se encontra com outros iguais, portanto, pode e deve ser deles amigo, exercer a “philia”. A “Polis” é quando um “oikos” se junta a outro “oikos” e o “basileus” não pode exercer na cidade o mesmo poder que ele tem em casa. No “oikos” o “basileus” exerce o poder de “despotes”, isto é, o poder privado baseado em uma hierarquia que vai desde si, passando pela esposa(s), filhos, chegando aos escravos e animais e coisas. Mas, ao juntar seu “oikos” a outro “oikos” deve negociar seu poder com outros “basileus” que igualmente tem o mesmo poder de “despotes”, e o deve como amigo, “philia”. A “philia” somente existe entre “despotes”, quer na categoria de oligarcas, quer na de aristocratas. Este poder que será exercido entre amigos será o poder na e da Polis, o poder público. Desta maneira temos a separação grega entre o privado (poder despótico) e o poder público (poder entre “basileus” amigos). As regras de convivência entre os “oikos” e os “basileus” devem ser discutidas em assembleias, as “ekklésias”.

Abrindo um breve parêntesis, devemos salientar a singularidade de um “oikos”. Um “oikos” mais do que uma casa e sua ordem hierárquica, era um espaço sagrado. Ao centro do “oikos” havia o lar. O lar era um espaço de devoção no qual se encontravam as estátuas dos deuses domésticos, dos antepassados e do fogo sagrado, o qual nunca poderia ser apagado. O “oikos” era a propriedade de uma família, era próprio de uma família. A propriedade da terra estava imbricada com a família, e esta com o lar, os antepassados e os deuses, assim como o fogo sagrado. A totalidade desta ordem privada e doméstica que aqui esboçamos era chamada de “oikonomia”, ou, em nossa linguagem, economia ou ainda administração. A economia era essa administração das coisas domésticas segundo uma dada hierarquia centrada por em espaço sagrado do lar, determinando certa propriedade: isto era para os antigos a “oikonomia”. Juntar um “oikos” a outro “oikos” era encontrar certa identidade de tradições, de língua, de deuses e de antepassados. A Polis de Atenas encontrou na deusa-macho Palas Atenas e em Zeus, o deus do Olimpo, esta síntese dos lares. Fechamos parêntesis.

“Ekklésia” que será traduzida para o termo latino Igreja. A “ekklésia” não é o espaço físico, mas a dimensão de encontro entre “basileus”. O espaço físico era a “ágora”, a praça, o lugar onde os homens se encontravam e debatiam seus problemas. Os homens saiam de seus “oikos” nos quais exerciam seu poder despótico e iam para a “ágora” para se encontrarem como “ekklésia”. Por isso a “ekklésia” trás o sentido de um sair para fora, um sair do “oikos” para um encontro na “ágora”, do espaço privado para o público. Este encontro com o respectivo debate público é a “ekklésia”. Quem poderia participar da “ekklésia”? Esta é uma pergunta pertinente e sua resposta nos leva para um tempo anterior, pois somente os homens que tivessem as armas e as vestimentas de guerra e pudessem usa-las, podiam participar da “ekklésia”.

Um dos momentos marcantes do poema homérico, Ilíada, é o encontro belicoso entre Aquiles e Heitor. O que se passa ali? Inúmeras coisas poderiam se destacar, mas salientemos apenas duas: primeiro, que a glória de um homem, o que o faria ser lembrado para além de sua existência física como um homem digno de ser lembrado em imitado, a glória (“kléos”) se obtinha na batalha. Morrer na guerra era morrer em “kléos” e com isso ser honrado pela memória. Se a biografia de um homem estava marcada pela biografia de seus antepassados e atrelada à da sua Polis, a “kléos” lhe daria um nome único, uma marca individual. O segundo ponto que podemos destacar está em que são dois homens lutando em nome de duas formas, estruturas distintas de Estado. Heitor luta por Tróia, a Cidade de muros inexpugnáveis, pois fora obra do próprio Poseidon, deus dos mares, Aquiles lutava pelos aqueus, pelos “basileus” reunidos em torno de Menelau. Aquiles, Ulisses, Menelau, Agamenon, etc. são “basileus” gregos que se reúnem em “ekklésia” e deliberam partir em guerra contra a Ilia. Dois homens se encontram e, em certo sentido, definem a sorte da guerra. O melhor dos aqueus, Aquiles, e o melhor de Tróia, Heitor. Ainda que Aquiles tenha profanado o templo de Apolo, é em favor dos aqueus que os deuses se voltam e conferem a vitória. Dois outros aspectos a salientar: primeiro, que nenhum “basileu” era obrigado a ir à guerra, mas era livre para ir e sair, mesmo tendo participado da “ekklésia” na qual se deliberou a guerra; segundo, os despojos de guerra eram repartidos entre todos os “basileus”, segundo regras de guerra determinadas por tradição ou por “ekklésia”.

Encontramo-nos com a proto-democracia grega, quando “basileus” se encontravam em “ekklésia” para definir a guerra e a paz, e depois da guerra, para determinar a partilha dos despojos. Como eram homens em igual posição social, um não podia se sobressair sobre o outro, a palavra era franqueada a qualquer um e as discussões eram livres e igualitárias. Mas, dizem os pesquisadores, há um passo a ser dado. A transformação da guerra. Os helenos desenvolveram uma nova tática de guerra: os hoplitas, mais ainda, a invenção da guerra em falanges com os hoplitas. Enquanto da era clássica os Heitores enfrentavam os Aquiles em busca de glória individual, na antiguidade grega estes foram substituídos por soldados marchando lado-a-lado, ombro-a-ombro, empunhando lanças, espadas, escudos, couraças e capacetes. Um bloco unido e homogêneo de soldados. 

A batalha no estrito de Termópilas (filme “Os 300 de Esparta”), retrata esta mudança tática da guerra helênica. Aquela narrativa trata de mostrar a superioridade da falanges e dos hoplitas sobre as formas tradicionais de guerra. Blocos compactos de soldados coesos e indiferenciados, comprometidos antes com o todo do que com sua própria glória. As falanges com poucos homens racionais e livres, contra os milhares de servos de um tirano. Ainda hoje somos tributadores do mito da igualdade e da racionalidade bélica. Se da “ekklésia” clássica a democracia herdou o direito igual à palavra a fim de se definir as regras da guerra, da era antiga os gregos herdaram a posição igual de todos na “ekklésia”. A “ekklésia” é o encontro de homens livres que tem o mesmo direito à palavra (isonomia) e mesma posição diante dos parceiros (isegoria), na qual se debatem as normas de convívio comum na Polis (público), os investimentos bélicos e monumentais na Polis, a guerra, os impostos, os despojos, e tudo que concerne à vida pública, ao domínio da Polis, da política.

A medida que se percebeu a eficácia das falanges e dos hoplitas, que lutavam não apenas por suas vidas e por sua glória individual, mas pela falange, pelo companheiro ao lado, à frente e atrás, as Polis arregimentaram outros homens, gregos, mas não ricos e nem nobres, antes, gregos pobres, os “demos”. Assim, homens ricos, nobres e pobres lutavam lado-a-lado nas falanges como hoplitas. Todos fazendo jus aos despojos de guerra, todos podendo participar das assembleias, todos podendo falar e estando diante de cada um. A isonomia e a isegoria foi estendida, gerando o conceito de democracia, o poder de muitos. A democracia é filha da guerra. A democracia é um problema para Platão, que vê nela uma degradação da Polis, pois esta deve ser governada por Um, o filósofo-rei. A democracia é um problema para Aristóteles, que hierarquiza os homens definindo cidadania ao ricos e nobres e subcidadania aos pobres.

Mas se a guerra pode ser uma chave de compreensão do Estado grego, as hierarquias sociais não podem ser entendidas apenas por razões econômicas, como nos informam alguns historiadores. Se uma Polis grega tinha homens ricos e pobres, também tinha cidadãos e “xenos” (estrangeiros, homens de outras Polis gregas), assim como bárbaros (escravos em linhas gerais). Um estrangeiro podia ser um homem rico, ou mesmo um homem virtuoso. Contudo, um “xenos” nunca seria um cidadão. Assim, a cidadania era definida por dois aspectos: uma hierarquia que partia da riqueza/nobreza, passava pelo pobre, até o escravo; uma hierarquia que partia do local de nascimento do homem e seus antepassados, passava pelo “xenos” até o bárbaro. Uma análise simplista a partir da ótica puramente econômica não explica as hierarquias nas cidades gregas. Antes devemos separar o privado do público, no espaço público devemos tomar a questão econômica e a ligada às “gens”, à pertença de um indivíduo a uma cidade grega ou não.Mas a “gens” não era definida apenas pelo nascimento, mas por uma cultura que passava pela língua, pelos deuses, pelos antepassados, pela tradição compartilhada.

Para o grego havia dois tipos de guerra. A dualidade era um método epistemológico para o conhecimento, e isto vemos presente na dialética platônica e em Aristóteles, também. Um grego poderia fazer guerra com outro grego, com um xenos. Tais confrontos não visavam a destruição do outro, pois este seu inimigo era seu amigo. Aquele outro grego de outra Polis era um igual, com mesma língua, tradições e panteão. Tais confrontos visavam mostrar quem era mais forte, hábil e merecedor de “kléos”. As Olimpíadas gregas traduziam este sentido de ser mais forte, ir mais longe e mais rápido. As Olimpíadas traduziam este ideal de teoria, de contemplação dos deuses nos heróis olímpicos.Um grego poderia fazer guerra com um não grego, um bárbaro. Um bárbaro não era um igual, mas um inferior, ao não possuir a razão, não falar a língua grega. O bárbaro de então se assemelha ao aborígene americano no século XVI até o século XXI, e suas terra com as terras das Américas. 

Nos escritos gregos clássicos e antigos que tratam da questão das fronteiras, está claro o tratamento que dão a estas quando seus vizinhos são outros gregos (“xenos”) ou são bárbaros. Quando as terras de um grego tem como lindeiro outro grego, as descrições de fronteiras são pormenorizado, detalhado com máxima precisão. Quando as terras de um grego tem como lindeiro um bárbaro, não há descrição alguma, como se suas terras terminassem em abismo, como se elas se abrissem ao infinito desconhecido. A visão cósmica de um grego também acompanha este modelo epistêmico: no centro do Cosmos a Terra, depois as sete esferas fixas, sendo a última a esfera das estrelas fixas, após ela o Motor Imóvel, e depois nada... O mundo grego é um Universo fechado, isto não quer dizer que seja limitado, apenas que tudo que a ele pertence e é conhecido e submetido a seu poder, isto existe; tudo mais não existe, até que um grego vá até lá.

Esta é a narrativa homérica da Odisséia. Ulisses deixa Tróia em direção a seu lar, Ítaca e sua mulher Penélope. Mas os deuses o leva a lugares desconhecidos e ao encontro de bárbaros de um olho só, que não são racionais, estando diante do herói grego como alguém que se pode dispor, pode-se matar, roubar, enganar, sem que com isto fira qualquer ética ou moral. É exatamente esta relação com um mundo fechado em suas razões tradicionais que Jesus o Cristo se voltou contra e para além do privado e do público, separou o violento mimético, do que “ágape” aquele que está próximo.

PARTE VI do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

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