domingo, julho 28, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE VIII


Platão é acusado pelo trabalho de expulsão do poeta da Cidade. O poeta que ele tende a expulsar é Homero, antes, a poesia que é confrontada por ele é a homérica. Expulsa-a não porque se volte para os deuses e os mitos, mas porque a conduta divina não é imitavel, digamos assim, não favorece a justiça na Cidade. Os atos de traição, vingança, ódio, injustiça, inveja, etc. não devem ser imitados pelos homens. Não nos esqueçamos que Aristóteles, mais tarde, contudo não colidindo com seu mestre, dirá que o homem é um animal que imita. 

Platão não expulsa os deuses, antes, aponta para uma teologia que seja produto, resultante do trabalho de contemplação, do filósofo-rei, do Mundo das Ideias. Não são os deuses que devem ser expulsos, mas uma poesia que produzindo uma teologia mítica integra-se com a teologia política, propiciando aos homens políticos condutas injustas. Mas tal contemplação defendida por Platão pretende trabalhar, ainda, a partir da teologia mítica, da teologia politica e da teologia natural, conforme a matriz tradicional que deveria preservar. 

Contudo, Sócrates, a quem Platão concede a voz, é acusado de impiedade, isto é, de não respeitar os deuses e perverter os jovens, em outras palavras, não observar as tradições. Piedade é a observação das tradições da Cidade: dos deuses, dos antepassados e das leis. Quando, podemos pensar assim, ele apenas procura a preservação da Cidade, acatando as consequências de sua piedade, isto é, morrer segundo a determinação do julgamento feito pela Cidade, tomando do veneno da cicuta. Sócrates não é moderno, isto é, alguém que fomentando uma novidade torna-se ímpio; antes, Sócrates é pio, quer preservar a Cidade em sua tríade teológica fundamental: natural, política e mítica. O que o Sócrates de Platão faz é propor novas narrativas míticas, que legitimem uma ordem política mais justa, que esteja integrada ao cosmos, à physis/natureza. Mais ainda, que a natureza e suas paixões, a ordem política e os deuses estejam todos sob a justa, bela, boa e verdadeira ideia.

Quando falamos de tradição devemos lembrar da Ilíada e da Odisseia. A Ilíada nos fala de uma parte da guerra travada entre os aqueus, a quem os romanos nos ensinaram a chamar de gregos, e os troianos, os habitantes da Cidade de Illia, aquela de muros intransponíveis, posto terem sidos feitos por Poseidon. Tal guerra é motivada pelo condução (forçada ou voluntária) de Helena, esposa do basileus de Esparta Menelau, para Tróia ou Illia, por Paris ou Alexandre, filho do basileu Príamo. A Ilíada narra prioritariamente a Aquiles, o herói aqueu, mas nos concede a possibilidade de conhecermos o mundo antigo e parte de sua cultura. O poema já parte do meio da guerra e não chega ao fim dela, mas à morte do herói que jaz em glória, eternizando o nome. 

O poema de Eurípedes, Ifigénia em Aulis, nos permite saber que os exércitos aqueus se reuniram na Grécia, mas a ausência de ventos os impediu de se dirigirem à Tróia, localizada no que hoje chamamos de Turquia. O basileus que organizara a expedição consultou os oráculos a fim de saber o que seria necessário para aplacar os deuses e possibilitar a travessia. Era necessário o sacrifício de sua filha Ifigénia aos deuses. Ifigénia foi trazida ao acampamento dos aqueus sob a falsa notícia de que iria se casar com Aquiles, mas foi surpreendida ao saber que seria morta pelo pai. Conta o mito que ela foi sacrificada aos deuses que se agradaram do holocausto, chamemos assim, fazendo retornar os ventos, possibilitando a continuação do movimento bélico contra Tróia.

Os sacrifícios faziam parte da cultura mediterrânea, mas de maneira diferente para diferentes Cidades. O mito da criação do mundo, do cosmos grego está envolto pela origem a partir do derramamento de sangue. Sem sangue não há criação, a origem é cruenta. Diferente é o mito da criação do mundo por parte dos israelitas. Para eles o mundo é obra da fala dos Helohym. No princípio Helohym disseram...e houve. O sacrifício sangrento ocorre após aquilo que os cristãos vão chamar de pecado, e não como obra criadora. O sangue é um artifício apaziguador e não fundador.

Retornando à épica homérica, a Odisseia nos narra o retorno do herói Ulisses à sua terra Ítaca. Após vencerem as guerra e de posse dos despojos e dos escravos e escravas (como nos conta o poema As Troianas de Eurípedes), aqueles guerreiros gregos retornarão às suas Cidades. Ulisses tem seu retorno narrado na épica Odisseia. O herói astuto deve passar por inúmeros desafios, dentre eles ir ao Ades e se encontrar com Aquiles. Também se encontrará na terra dos Ciclopes, os monstros de um olho só e confrontará a Polifemo, o guardador de ovelhas. Se a civilização era o complexo geográfico e cultural, digamos, tradicional definido pelas Cidades gregas, os estrangeiros eram os Troianos, com deuses similares, mas com tradições distintas e os bárbaros eram os Ciclopes, monstros que não viviam em cidades, não conheciam o vinho, ou seja, toda uma ordem de produção que exigia o controle do tempo e das estações. Ulisses, para escapar dos monstros bárbaros, diz-se chamar “ninguém” e assim inverte a lógica civilizado-bárbaro, confundindo aquele que deve ao fim perder a visão de um olho só.

Se na Ilíada os aqueus são os vencedores de uma guerra épica que expõe frente a frente o melhor (aristos) filho da Grécia, Aquiles e o melhor filho de Troia, Heitor, demonstrando a supremacia do herói grego sobre o melhor guerreiro dentre os estrangeiros (xenos), na Odisseia a astúcia intelectual de Ulisses é o recurso heroico que possibilitará aquele herói retornar a Ítaca e rever sua esposa Penélope. Assim, estas duas obras poéticas de Homero salientam a supremacia grega na arte bélica e na astúcia, ou a capacidade de prevalecer pelo uso do intelecto. O homem grego é, então, o melhor homem, segundo esta teologia mítica de Homero compilada por volta do século VII a.C.

No século I a.C. Virgílio escreve sua épica Eneida como uma obra que visa ser um narrativa mítica segundo a tradição homérica, encomendado pelo imperador romano Augustus. A Eneida narra os feitos heroicos de Enéas, herói fundador do que virá ser Roma e toma como matriz poética a Odisseia e a Ilíada, sintetizando num único volume estas duas obras. Enéas seria filho de Anquises com Afrodite e sobrinho de Príamo, rei de Tróia. O herói sobrevive à queda da Cidade, fugindo dali com seu pai nas costas, carregando uma estátua do deus troiano, juntamente com sua esposa Creusa e seu filho Ascânio. Seu epíteto (neste caso é o que é acrescido ao nome e que o qualifica) será repetidamente de “o piedoso”, marcado pela imagem de quem guarda os deuses, os antepassados e a lei da Cidade.

Enquanto o herói romano tem como qualificador a piedade, os gregos da Eneida são marcados pela impiedade. A tomada de Tróia é marcada pela vileza de Ulisses que engana os homens com um presente aos deuses, um Cavalo oco de madeira, acentuando a mentira. A queda de Tróia é retratada pela crueldade dos guerreiros aqueus que violando as leis de guerra matam a Príamo, rei idoso que abraça a imagem marmórea do deus, matam-no ali mesmo em sua súplica. A impiedade grega é contraposta a pia imagem do herói romano. Esta é a grande inversão da narrativa de Virgílio a partir da matriz narrativa de Homero. Enquanto Homero narra a supremacia bélica e da astúcia heroica dos vitoriosos gregos, a narrativa de Virgílio acentua a supremacia romana a partir da imagem da piedade. 

Apreendido este deslocamento narrativo desde a épica homérica, aquela que se funda na glória (kleos) do herói grego como o melhor (aristos) na guerra e na astúcia, até a épica virgiliana que se funda na piedade romana como guarda dos deuses, dos antepassados e da tradição, podemos perceber a produção de uma teologia mítica que estará imbricada numa teologia política e numa teologia natural que legitimará o poder da Cidade Eterna. Este deslocamento permitirá ao mesmo tempo deslocar o centro epistemológico da narrativa, como manter intacto o edifício narrativo. A épica homérica é, então, reproduzida por Virgílio em detalhes que vão desde a guerra de Tróia – no caso o fim da guerra e a suposta vitória dos aqueus – até a viagem de Enéas até a Itália – num paralelo sensível com a viagem de Ulisses até Ítaca. O herói romano também conhece os estrangeiros e os bárbaros, aqueles com quem se une e com quem digladia, e também aqueles que devem ser eliminados, destruídos. Também o herói desce ao Ades e vence o esquecimento da morte.

Este movimento circular com o simultâneo deslocamento do centro epistemológico também garantem aos romanos uma legitimação da narrativa de sua supremacia posterior sobre os gregos. Em outras palavras, é o retorno do oprimido como vencedor sobre o opressor. Retorno este legitimado não mais apenas sobre o ser um melhor guerreiro ou um homem mais astuto, ou seja, um homem melhor, mas legitimado pela piedade, isto é, a tradição. Roma é a Cidade cujo fundamento é a piedade e a partir da piedade ergue-se um edifício ordenado pelo que é mais sagrado: os deuses, os antepassados e as leis.

Aos hoplitas e às falanges gregas, que conhecemos, após os heróis gregos e fundadores da ekklesias bélicas, Roma funde uma forte hierarquia social de matriz militar com uma indiferenciação das centúrias romanas. Contudo, a questão que nos importa salientar no momento é que Roma é a vingança dos deuses de Tróia contra os ímpios aqueus que ultrajaram as leis da Cidade antiga. Como um Édipo Rei que ultrajando as leis de Corinto traz sobre si e sobre a Cidade a desordem, mesmo vociferando contra as tradições conhece um fim trágico, também os gregos conhecem a espada e a soberania romana. Mas se os gregos perdem a liberdade para os piedosos romanos, os romanos mantém intacto a ordem tradicional que herdaram da Grécia. A história conhece, então, menos um movimento progressivo e mais uma circularidade.

Roma deverá guardar a tradição, pois é a partir dela que sua teologia mítica operará. Roma não poderá esquecer de absorver o legado daqueles que triunfaram no passado, mas criticará o tendão de Aquiles que os fez perecer no tempo. Enéas levará até a Itália o deus que trouxe desde Illia, assim como o fogo que não pode apagar, até que estes encontrem o seu lar, a propriedade dos romanos. Roma herda de Tróia a memória da impiedade dos aqueus e herda dos helenos o ordenamento racional.

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