terça-feira, julho 09, 2013

UM ESBOÇO SOBRE AS RELIGIÕES CRISTÃS DESDE A IDEIA DE COMUNIDADE ATÉ A DE UMA FÉ EGOCENTRADA. PARTE V





Há, nos textos de pensadores da antiguidade, uma presença repetida do tema da amizade. Mas, para que possamos nos referenciar melhor sobre a importância da amizade na constituição da Cidade, traduzida pela abordagem de Platão, Aristóteles, Cícero e Agostinho, na antiguidade e por Tomás de Aquino no medievo, devemos precisar as diferenças daquela afetação da alma que chamamos de amor. Sabemos que o amor, na língua grega antiga, era expresso por três palavras: philia, éros e ágape, cada qual apontando para uma maneira de relação. Para precisarmos melhor o uso no tempo destas palavras e aquilo que elas pretendiam dizer, tomemos inicialmente o sentido dado pelos cristãos.

O ágape será amplamente utilizado pelos cristãos que entenderão este tipo de amor como aquele expresso por Deus para com a humanidade, assim, referenciado pelo neoplatonismo-agostiniano, o ágape será o Amor Ideal, o amor perfeito, o amor doação. O ágape será o amor incorruptível, imutável, verdadeiro, com que Deus se dirige aos homens e mulheres, ainda mais, à toda criação. Dirão que Deus criou o mundo porque amou e o amor terá sido o movimento criador de Deus. Em termos neoplatônicos, Deus irradia-se a si mesmo como amor e este sendo a causa da existência das coisas criadas. Deus é ágape e segundo o seu Ser ele cria.

A contraparte do ágape estaria no éros. Esta forma de amor estaria ligada à carne, à matéria, ao corruptível, imutável, inconstante, ao que é e deixa de ser, às paixões e aos sentidos. Éros é tomado como o jogo da sedução, do engano, até mesmo do diabólico. Quando distanciando, contudo, absorvendo o gnosticismo e o maniqueísmo, assim como buscando se diferenciar do paganismo, o cristianismo hegemônico dirá que o éros é o amor no prazer sexual. Assim como o amor espiritual será o ágape, o amor carnal será o éros. Desta maneira a dualidade entre o mundo inteligível e o mundo sensível, entre o imóvel e o móvel, entre o Ser e o não-Ser, entre espírito e carne é posta também a operar quando falamos de amor. De um lado o ágape e de outro o éros. O ágape como o amor de Deus pela humanidade e o amor daquele que crê e se deixa transpassar pelo amor de Deus, vindo a amar a humanidade. 

Agostinho dirá: ama e faze tudo o que queres, isto é, ágape e faze o que o desejo de Deus em você o levar a fazer. Amar/ágape é ser absorvido pelo amor de Deus e nesta absorção amar como Deus ama e amar o que Deus ama. O ágape é uma forma de comtemplação teórica que será radicalizada pelos místicos medievais. Qie se contraporá ao éros, como o amor sensual, material, o amor que hoje se tem e amanhã já deixou de se ter. Dito isto devemos perceber duas coisas: primeiramente que a philia, que traduzimos por amizade, foi, como que um terceiro excluído, sendo escamoteada, obliterada, deixada de ser referencia para as relações entre os humanos; segundo, que esta conceituação bivalente e opositiva entre ágape e éros que falamos acima foi uma construção tardia do cristianismo. A dualidade ágape/éros estará em conformidade à dualidade espírito/corpo, inteligível/sensível.

Tomemos então outras referências para buscarmos outra perspectiva de compreensão do amor. Para nossa releitura é importante salientar que o éros e o ágape não tinham este sentido opositivo e excludente, antes, integravam com a philia um conjunto de dizeres sobre as relações entre pessoas e deuses. Inicialmente tomemos o éros. Podemos dizer, que esta expressão do amor nos fala sobre o fazer-se amável, a disposição de uma pessoa para que seja amada por outra. É um ir em direção ao outro a fim de fazer com que este outro ame aquele que se aproxima. Fazer-se amável não é o mesmo que seduzir, mas, digamos aproximadamente que é ser simpático, agradável, acessível.
Ágape assume o sentido oposto de éros quando se pensa no movimento que ele procura descrever. Mas, não é excludente, antes, complementar. Ágape nos fala em amar o outro sem a expectativa da retribuição, da aceitação. Ágape é ir em direção ao outro sem que, necessariamente, o outro me ame/éros. É buscar a aproximação não para ser amado, mas porque ama. Haveria certa incondicionalidade. Éros e ágape, como podemos ver, não se excluem, mas podem vir a se complementar. Alguém pode ir ao encontro de outra pessoa por ágape e concomitantemente, neste ir, ir eroticamente, isto é, buscando ser amável, ser amado.

Dito isto podemos tomar a terceira expressão do amor que os gregos chamavam de philia. Enquanto éros e ágape nos apontam para diferenças, philia nos fala de identificação. Em outras palavras, ágape implica no amor que uma pessoa tem por outra, mesmo que esta segunda não o corresponda, havendo, assim, uma diferença entre o amor da primeira e da segunda pessoa. No éros igualmente há uma diferença de amor, pois posso não amar alguém, mas fazer-me amável a fim de ser amado determinando uma intenção de diferenciação entre o eu e o tu. Contudo a philia é um tipo de amor que se coloca quando há reciprocidade e identidade de “sentimentos”. 

Aristóteles, Cícero e Montesquieu (filósofo moderno) escreveram textos memoráveis sobre a philia e em seus escritos podemos ver o eco da seguinte proposição: “os amigos são dois corpos e uma mesma alma”, são dois corpos distintos, mas com identidade, isto é, uma mesma alma. Agostinho em suas Confissões toma este conceito de philia grego-romana para descrever o movimento da alma desde o distanciamento de Deus até a identificação com ele, como amizade, philia.

Aristóteles, na Ética a Nicômaco, ou Ética Nicomaquéia – e nos parece que é este texto que será relido por Cícero e Montesquieu – nos dirá que há tipos diferentes entre relacionamentos, mas que somente um destes “sentimentos” poderá ser chamado de philia. Um homem e uma mulher se relacionam para procriar, portanto, sendo motivados por um interesse não podem nutrir a amizade. Um pai e um filho se relacionam hierarquicamente, pois o primeiro deve usar de autoridade e de mestria sobre o segundo, portanto não podem ter philia. Irmãos não são amigos por natureza, ou, o fato de duas pessoas serem irmãos não os torna amigos, pois a amizade não é imposta, antes, é um movimento da alma. Pessoas que estabelecem relações comerciais, quando há trocas mercantis ou diferenças de riquezas, não podem ser amigos, pelo mesmo móvito que um homem e uma mulher não o podem, pois há interesses envolvidos. Um servo e um senhor também não são amigos porque há diferenças sociais envolvidas, hierarquias sociais. Não há amizade entre pessoas com “virtudes” desiguais, ou, com excelências, diríamos hoje, com capital social, ou, cultura distintas.

Em linhas gerais, a amizade se dá entre dois homens com condições econômicas e culturais similares e que se escolhem desinteressadamente e mutuamente. Cada um destes dois homens encontrarão no amigo uma identidade de alma. Terão prazer um na presença de outro, sem que nada peçam e nada ofereçam. Não haverá diferenças hierárquicas, culturais, econômicas e sexuais, podendo assim, nutrir a amizade entre eles. A amizade, desta maneira, não é uma forma de relacionamento que todos os homens podem estabelecer com todos os homens, mas alguns homens dentre os aristocratas e os oligarcas da Cidade podem cultivar mutuamente. Qual a importância, então, da philia para que Aristóteles dedicasse um texto longo sobre o tema?

Aristóteles está, dentro do movimento iniciado por Platão, a Filosofia, procurando uma racionalidade diferente. Dissemos anteriormente que enquanto Platão entendia que a Razão era contemplativa, isto é, um olhar para o Mundo das Idéias, Aristóteles buscava a racionalidade inscrita no mundo sensível. Platão está preocupado com o éros, em se fazer amável e desta maneira obter a Teoria. Aristóteles está preocupado com que se apresenta aos sentidos e por meio deste buscar a razão das e para as coisas. Enquanto Platão faz uso constante de mitologias para apoiar seus discursos, Aristóteles busca exemplos na natureza.

Platão para descrever o porque dos homens viverem em Cidades, propõe um mito da “criação”. Segundo este, quando os deuses criaram os animais, a cada um conferiram uma competência/habilidade que os permitia sobreviver entre eles, uns contra os outros. A uns a força, outros a velocidade, outros a furtividade, etc., mas nada coube aos homens. Aos homens veio a caber, a fim de não serem mortos pelos demais animais, viver em Cidades e para tanto precisavam de habilidades para convivência, como a justiça. Menos nos importa aqui o mito e sua precisão, e mais nos importa que esta mitologia platônica nos diz que os homens passaram a viver em Cidades a fim de suprir carências. É a carência de habilidades individuais e certo medo que levou o homem a se unir a outro homem numa Cidade, a qual deve buscar a justiça. Para que a justiça seja possível a Cidade deve ser ordenada a partir de uma monarquia, isto é, o poder do um. O monarca platônico é o filósofo-rei, que contemplando o Mundo das Ideias, isto é, a Ideia do Bem, do Belo, do Justo e do Verdadeiro, ordena hierarquicamente todas as funções e articulações na Cidade. Assim, temos o mito platônico para a Cidade integrado com a Política: os deuses, a política e a mitologia. Platão não precisa da amizade para ordenar o cosmos político, pelo menos não no sentido que estamos adotando.

Aristóteles toma outro viés. Este nos diz que a Cidade não é resultado de carência e medo, mas que a Cidade visa o bem-estar. Segundo a Política de Aristóteles, um “oikos” (uma casa, que tinha no pater família, no despotes, no poder paterno o centro do poder, organizada hierarquicamente a partir dai pela mulher, o filho, o escravo e o animal) se junta a outro “oikos”, para o aumento do bem-estar. Na proposição de Aristóteles não há deuses e criação, mas “oikos” cuja ordem privada é mantida, mas para que se aumente o bem-estar de cada um, se juntam numa vida pública. O público e o privado estão integrados para que o bem-estar seja ampliado. No espaço público, então, os homens deverão buscar forma de vida comum. Tendo em vista esta intensão de viverem juntos e com incremento de bem-estar, buscam constituir a Cidade, isto é, estabelecer ordem legal e institucional. Mas a questão é: porque juntam estes “oikos” àqueles “oikos” e deixam outros fora do arranjo?

Aqui entra a philia como amarração da Cidade. Os despotes/pater família, os melhores e mais ricos se juntam sem um interesse prévio, mas desinteressadamente. Um “oikos” se junta a outro “oikos” porque estes aristocratas e oligarcas se identificam uns com os outros e visando o bem-estar comum constituem uma Cidade. Não há aqui o interesse mercantil, hierárquico e nem mesmo as determinações familiares e de reprodução, mas a identificação entre os despotes/pater família. O poder na Cidade deve ser exercido por todos os cidadãos, em revezamento de cargos e funções entre eles e por meio de sorteio.

Mas ali onde se dá a constituição da Cidade por meio da amizade, se instaura também a diferença, a hierarquização social, a inimizade. Enquanto a amizade é identidade não motivada por interesses econômicos e raciais (isto é, entre senhor e servo), a inimizade pode ser pensado como as relações estabelecidas entre indivíduos desiguais economicamente e racialmente. A Cidade de Aristóteles é fendida não apenas entre o privado e o público, em que o privado é ordenado pelo governo despótico do pater família e hierarquizado a partir deste. A Cidade é fendida no espaço público entre os amigos e os não amigos: de um lado os gregos aristocratas e oligarcas, e de outro os gregos do povo, os gregos de outras cidades, os escravos.

Precisamos entender que tanto o mito platônico para a Cidade, como o mito aristotélico podem ser entendido menos como descrições histórico-científico como entendemos hoje com o termo, e mais discursos com caráter prescritivo. Ao escolher o mito da criação, Platão articula medo, carência, justiça e a monarquia do filósofo-rei. Ao escolher o bem-estar, a filia, a constituição da Cidade pela divisão e revezamento de poder pelos aristocratas e oligarcas, Aristóteles privilegia outra ordem política. Enquanto a ordem politica de Aristóteles requer a amizade, a ordem política de Platão deixa-a de lado. Cícero retomará o tema da amizade no texto hoje conhecido por nós como “Da Amizade”, que menos apresenta elementos novos e mais rearticula-a em Roma. Agostinho, como dissemos, articula a amizade no encaminhamento da alma em seu retorno a Deus, despolitizando-a. A Idade Média verá a Cidade dos Homens reduzir sua importância como meio de justiça e salvação, isto é, como meio de fazer retornar a alma a Deus. Por outro lado, a hegemonia do pensamento neoplatônico no Ocidente será o mote. Desta maneira a amizade será um tema pouco visitado. Montesquieu retomará o tema, propondo uma releitura de Aristóteles e Cícero, como certa crítica ao mundo cristão em eclipsamento. Mas tanto será tarde para se pensar numa amizade, como ela retomará apenas como identidade entre aristocratas e oligarcas.

Tomás de Aquino, ainda que pense a amizade, privilegiará o éros, como um movimento humano de se fazer agradável a Deus. Sem abandonar o ágape cristão que por quase mil e trezentos anos imperou absoluto diante do esvaecimento da philia e a demonização do éros, Aquino retoma corajosamente esta última forma de amor. Ao homem, assim, caberia também o esforço por ser amado por Deus, não no sentido de levar Deus a amá-lo, mas de ser receptivo ao ágape e retribuir em éros. Aquino reintegra, sem descarte, estes três amores na chave neoplatônica-cristã do Um. Contudo, o individualismo e a prevalência da quantificação e valoração da vida promoverão um abandono da temática do amor, nestes termos apresentados.


PARTE V do texto de Marcos Nicolini, bacharel em Engenharia de Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutorando pelo Programa de Pós--Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

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